ELOGIO DA IMPERFEIÇÃO | Ainda pessoas

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Ainda o casal de velhotes da bancada na Praça da Fruta. Não conseguimos deixar de acompanhar por alguns momentos aquela espécie de via sacra, parte integrante da vida daquelas pessoas.
Naquele dia deixei-me seduzir pela caixa de feijão maduro que estava à venda e aproximei-me para comprar.

Só estava ela, à conversa com uma vizinha de banca. Pela primeira vez vi-a sorrir com a boca e com os olhos, numa cumplicidade de opiniões e de interesses. Quando parei em frente da bancada, calaram-se subitamente e os olhos voltaram a endurecer. Sem antipatia mas sem proximidade. Fui atendida de modo eficiente e correto, pressentindo que o desejo de ambas era que me despachasse para poderem retomar a conversa, o que fizeram mal paguei e me afastei.
O homem não estava à vista, imaginei que estaria a fazer horas, talvez a beber um copo numa taberna da praça e também ele numa conversa cúmplice com outros homens.
Arrisquei afirmar que jamais entre os dois terá havido aquele nível de cumplicidade prazerosa. Como se estivessem certos de que entre homens e mulheres tal fosse quase um tabu, uma impossibilidade, uma fraqueza.
Pensei nas muitas histórias de homens e mulheres cujas narrativas partilho e acompanho ou acompanhei. Narrativas que levam à conclusão de que se todas as relações são complexas, as relações de casal são as de maior complexidade. Difícil estar de facto como par e de modo paritário. Difícil não predominar uma relação de poder como posse e/ou submissão. Difícil o vínculo a partir da confiança sem medo e sem mentira. Difícil viver o outro como complementar e desejável pela diferença. Difícil a sexualidade vivida como intimidade e cumplicidade. Difícil abandonar a posição paranóide em que as vulnerabilidades de cada um se podem mostrar, sem se transformarem em armas de arremesso nos momentos de desencontro e de zanga. Difícil não cair no jogo manipulatório da culpa e dos bodes expiatórios…
Isto não significa a ausência ou a fragilidade dos vínculos. O trabalho, as obrigações, os hábitos, as rotinas, os filhos, a família, o social, a culpa… têm um peso e uma força imensos e poderosos…
Talvez por isso a atração curiosa por aquele velho casal. Por servirem de ecrã onde aconteceu colocar uma série de fantasias sobre modos de vida e de relação, como espelho da força dos elos que se estabelecem com os outros, que atam e prendem muitas vezes não para aproximar, antes mais para manter a impossibilidade de um encontro, com o qual não seria possível lidar e viver… porque embora desejado seria estranho e assustador… Como diz o Chico Buarque numa canção “… até que a morte os una…”

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