Dois narizes num mar de plástico

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Gazeta das Caldas

A infância é o futuro se a vida no planeta não se extinguir. O plástico, dizem os cientistas – e é uma informação generalizada – tende para a eternidade. Podemos pensar que o plástico sobreviverá à extinção para baralhar os extraterrestres que descobrirem o planeta. Esta afirmação não é pacífica, sabemos como o poder imperial nega evidências científicas, nomeadamente a tragédia do aquecimento global.
O plástico é, para nós, um questão de sobrevivência, as imagens da sua natureza assassina multiplicam-se: vemos baleias e aves morrerem de asfixia, entrou na cadeia alimentar. Comemos, ao comer peixe, por exemplo, micro-plástico – a bicharada julga que é alimento e nós comemos essa bicharada que come plástico.
No Teatro da Rainha pensamos no futuro, somos dependentes, na estratégia de acção e reportórios, de uma ideia de futuro que coincida com a existência de vida no planeta. O homem é dotado de inteligência, de pensamento e a humanidade seria – diz a filosofia – essa capacidade de realização do humano como fim em si, distinguindo-se do predador. O futuro do planeta seria a humanidade dos iguais. Temos assistido ao contrário. A história é a de sucessivos massacres, a violência o seu motor. As guerras estão mundializadas mesmo que não exista a 3ª guerra mundial – há quem diga que a 4ª já começou. Pelo lado do “progresso” chegámos à necessidade de dizer sempre que tal ou tal projecto é ecológico e sustentável, que não “mata” a natureza. Estamos num beco sem saída à procura da saída. Tanta ciência e tecnologia aqui nos trouxeram, pensemos na energia nuclear, ou num outro plano, na internet como doce fonte poluidora das mentes e comportamentos.
Íamos pelas areias de São Martinho quando tropeçámos em doses de plásticos onde as conchas e algas e os caranguejitos mais as pulgas da areia deveriam ser a população residente. Dissemos: vamos fazer uma criação para crianças sobre esta nova peste. E aí está: cumpriram-se neste Março quarenta e nove apresentações de Dois narizes num mar de plástico. Não, não é um espectáculo didáctico. É um conjunto de constatações e interrogações, numa trama narrativa em torno desta problemática materializado cenicamente segundo a técnica dos clowns, de que temos somo tradição própria o nosso Ruzante/Chaplin e O fim do princípio. O gag é uma arma, os lazzi – sequências de gag’s, sketch’s de dominante física, termo da commedia dell’arte – e o riso, se não for obrigatório, como o da indústria do entretenimento, é a manifestação humana mais específica de uma estado natural/cultural de alegria. E liberta, quando vai fundo, toca coração e tripas. É emancipador, contra estatutos pomposos e poeira instituída. O teatro tem essa missão de espalhar alegria agindo “radicalmente”, posicionalmente, contra a destruição da vida no planeta. Este espectáculo é um alerta. As mais de 2165 crianças que o viram que falem. E falaram, pois cada apresentação terminava com um debate conduzido pelo Nuno Machado e pelo José Carlos Faria. Somos pelo teatro de câmara contra as tentações do massivo. Respeitar as crianças é dar-lhes espaço de afirmação individual, o que não se faz com enchentes mas com um número restrito de espectadores. Cada sessão, das 49 realizadas, teve entre 20 a 60 crianças e ninguém se sentiu um anónimo perdido na multidão. O teatro é uma assembleia e um remédio para as solidões na massa, é uma manifestação colectiva em que cada sujeito é uma pessoa inteira. Foi e é assim em Dois narizes num mar de plástico. E termino com uma pergunta que uma criança fez no fim de uma das apresentações – E que é que vocês vão fazer com este lixo no fim do espectáculo? Uma boa pergunta, sem dúvida.

Fernando Mora Ramos
fernando.mora.ramos@gmail.com

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