Ano após ano, o Mosteiro de Alcobaça, um belíssimo espécimen do gótico português, é o palco da mostra internacional de doces e licores conventuais. «Com açúcar e com mel até as pedras sabem bem», diz o ditado. E são as pedras deste mosteiro, onde o evento se realiza, que deixam um sabor doce na memória.
Hoje, quando tanto se debate sobre que uso a dar ao nosso património, uma coisa está certa em relação a este evento: o certame está contextualizado, in loco. Isto porque há uma longa tradição de confecção de doces conventuais no nosso país atribuída aos monges. É interessante saber que ainda há mosteiros e abadias a dedicarem-se à tradição de doces e licores, como pude testemunhar na feira.
Doces à parte, é um bom pretexto para passear a noite nos claustros, em silêncio e contemplação, ou sentar-se na cozinha a ouvir a água a correr, servindo a feira como um trampolim para conhecer a história e a evolução da sua arquitectura. Este monumento nacional, considerado um Património da Humanidade pela UNESCO, é um lembrete constante da lista das tradições ligadas às ordens monásticas e o seu grande contributo à agricultura, ao fabrico de vinho e de azeite, e por fim, à longa evolução da doçaria aperfeiçoada segundo suas receitas originais.
Em termos históricos, nas terras da Reconquista, durante a afirmação do poder régio, novas ideias arquitetónicas surgiram em Portugal, facilitadas pelos caminhos religiosos e com a vinda de mestres pedreiros. O gosto de trabalhar a pedra viria a criar novas soluções, permitindo melhor iluminação natural, menos volume lateral e mais verticalidade. As igrejas ao longo do país começaram a sentir a chegada do Gótico, do centro para o sul. Chegava a inovação e a ideologia com a vinda das ordens religiosas. Inovação arquitectónica (com a introdução do arco ogival que iria substituir a abóboda do berço) iria aliar-se às novas mentalidades com a implantação de devoção de certos cultos. A doação régia concederia vastas terras a essas ordens.
Ao longo da história da arte em Portugal, temos a presença de artistas e mestres construtores oriundos de regiões estilisticamente mais avançadas. Esta influência resultou, desde o início, na introdução de formas e aspectos que tinham origem em modelos franceses (abadia de Cluny e Clairvaux) e espanhóis (Santiago de Compostela), embora as igrejas nacionais tenham sido bastante mais modestas, em termos de dimensões, que os exemplos europeus.
Na época das construções religiosas, que corresponde entre os meados do século XII e XIII, temos obras românicas, ainda na sua fase de construção, a serem convertidas em estruturas híbridas. Isto é, numa estrutura românica, acrescentava-se o novo estilo em forma de capelas, abóbodas, claustros, rosáceas e decorações vegetalistas góticas. Uma igreja românica também se sujeitava a remodelação ao gosto gótico.
A primeira construção, que arrancou usando inteiramente a nova linguagem gótica, foi o Mosteiro de Santa Maria da Alcobaça. Os Cistercienses, que terão recebido enormes doações régias na Beira Litoral e na Estremadura, implantaram-se aqui a sua casa seguindo o modelo da abadia francesa.
Erguido entre 1172 e 1252, nas margens do rio Alcoa, a abadia apresenta um edifício de «muito assinável volume», construído com ideais religiosos e estéticos da ordem do Cister, nomeadamente simplicidade e austeridade, fruto do pensamento do monge mais célebre desta ordem, Bernardo de Claraval. Tratou-se de uma construção ascética despojada de todos os ornamentos supérfluos, contra luxo e opulência de decorações góticas que «fazem desviar a atenção dos que rezam», nas palavras de S. Bernardo. Descordando com a vida dos monges de Cluny, ele escreveu, «As igrejas cintilam por todo o lado, mas os pobres têm fome. As paredes das igrejas estão cobertas de ouro, mas os filhos da igreja permanecem nus». Essas ideias do abade francês são precursores do movimento reformista, algo que iria acontecer séculos depois, influenciando a Igreja e as artes.
Ao mesmo tempo em que se deu aquele progresso material inicial, deu-se na Igreja uma renovação espiritual. Em simultâneo, testemunhámos novas ideias filosóficas e teorias da arte, especialmente do frade S. Tomás de Aquino (1225-1274). Para ele, toda a beleza é formal. Pois, todo o conhecimento se dirige, não ao conteúdo, mas às formas. Formas essas que são criadas por Deus e uma vez criadas, multiplicam por si mesmas.
O novo estilo experimentado em Alcobaça é um marco histórico que veio a começar uma época de construções góticas no país, espalhando-se por Santarém, Tomar, Évora, e por aí fora, num país que estava muito enraizado no estilo românico (especialmente no norte), até chegarmos ao seu auge, já bastante mais tarde, na Batalha e nos Jerónimos. No entanto, as suas dimensões, a pureza do estilo arquitectónico, a beleza dos materiais arranjados num gosto da época tornam a abadia em Alcobaça numa obra-prima da arte gótica cisterciense. É igualmente exemplo de um estabelecimento Cister com infraestrutura única de sistemas hidráulicos e edifícios monásticos funcionais. Ao longo da sua evolução, a autenticidade e a integridade da sua arquitectura foram sempre salvaguardadas, incluindo as obras de restauro que respeitaram as técnicas e materiais originais.