O título desta crónica vai assim mesmo, em francês, pois não conheço vocábulo em Português, que traduza fielmente o significado da mesma, visto tratar-se duma situação, que em principio nunca acontecerá em nenhum dos países que têm o português como língua oficial. Trata-se dum fenónemo meteorológico, produzido pela existência de temperaturas mais elevadas nas camadas altas da atmosfera, que junto ao solo. Assim a precipitação que normalmente seria de chuva, ao aproximar-se do solo transforma-se em gelo.
É a situção mais grave e perigosa que possa acontecer. Podem cair 80 ou 90 cms de neve no espaço de algumas horas, como acontece regularmente, que isso não impede que a vida siga o seu curso normal. Todas as cidades, grandes e pequenas, estão equipadas com maquinaria pesada para proceder à respectiva limpeza. As imagens que nos chegam por vezes dos Estados Unidos quando caem 30 ou 40 cms de neve são para nós caricatas. Já com o gelo a situação é diferente. Imaginem os fios condutores de electricidade, transformados em autênticas cordas brancas e transparentes com 5 cms de diâmetro. Não há postes que resistam e quando o primeiro cai, por efeito dominó, todos os outros acabam por cair igualmente.
A chuva gelada começou a cair no dia 5 de Janeiro e durou cinco dias ininterruptos. Como até essa data não se usavam praticamente fios condutores subterrâneos, devido aos custos acrescidos que isso implica, visto terem de se fazer túneis com pelo menos 2 metros (a terra gela até essa profundidade) o resultado foi que, pouco a pouco toda a região de Montreal ficou privada de corrente eléctrica, praticamente desde os primeiros dias de tempestade. Como se imagina, toda a máquina produtiva parou, e apenas os hospitais funcionavam com o auxílio de geradores diesel. Sendo a grande cidade uma ilha, cujo acesso é garantido por três pontes a Norte e outras tantas a Sul com mais um túnel, devido ao gelo acumulado sobre as pontes o tráfego automóvel estava impedido, e assim, eu e muitos outros que habitamos no exterior da grande cidade, ficàmos sem acesso às nossas residências durante vários dias.
A resposta das autoridades canadianas esteve no entanto à altura, e para evitar roubos e pilhagens, os militares vieram de imediato para o terreno. Foi declarado o estado de emergência, com recolher obrigatório a partir das 19 horas. No nosso caso quando finalmente passados quatro ou cinco dias voltamos a casa, tudo estava como tínhamos deixado. Mas o frio era tanto que não ficámos lá muito tempo. Todos os alimentos perecíveis deixados no frigorifico estavam obviamente estragados. Muitos tectos não suportaram o peso da camada de gelo e desabaram. As companhias de seguros pagaram indemnizações incumensuráveis, pois raros foram aqueles que não reclamaram qualquer coisa. No meu caso pessoal lembro-me bem que o meu carro, novinho em folha, ficara uma noite debaixo de uma árvore. Depois de retirada a camada de gelo que o cobria verifiquei que tinha a carrossaria completamente amolgada, devido às bolas de gelo que se desprendiam dos ramos.
Apesar de residir neste país há 35 anos, creio ter sido esta a única vez em que algo de verdadeiramente grave se passou e que pôs o Québec, nas agências noticiosas do resto do Mundo. Lembro-me até, de na altura ter enviado uma pequena crónica para a Gazeta relatando a situação vivida. A razão próxima para tal, foi a constatação in loco, de como as populações em caso de situações extremas e com a adrenalina ao máximo são capazes de enfrentar essas situações. Está ainda bem presente na minha memória o pormenor das companhias de caminho de ferro terem disponibilizado as suas potentes locomotivas a diesel, que rebocam intermináveis filas de vagões entre o Atlântico e o Pacífico, para produzirem a electricidade necessária aos locais de acolhimento das populações. É caso para dizer, felizmente que a grande maioria dos nossos comboios não são eléctricos.
Depois disto e nas novas urbanizações, os fios eléctricos são agora subterrâneos, mas os fios de alta tensão que descem milhares de quilómetros da zona das grandes barragens, até à civilização são naturalmente atmosféricos. Não estamos assim livres de voltar a viver uma situação semelhante.
J.L Reboleira Alexandre
jose.alexandre@videotron.ca
































