Manuel Carvalho
Ex-diretor e atual redactor principal do PÚBLICO
Num passado não muito distante acreditava-se numa revolução benévola do jornalismo. Acreditava-se que a internet permitiria a nascença de uma nova categoria de mediadores, os “jornalistas-cidadãos”. Ninguém fora capaz de prever a dinâmica das redes sociais alimentadas por algoritmos que potenciam o discurso de ódio em detrimento da empatia com os outros, da emoção primitiva e irracional em desfavor da razão que determinava as regras da vida em comunidade. Essa esperança acabou e o jornalismo precisa de se redefinir. Precisa de determinar como pode assumir nestes tempos de tribalismo o seu tradicional papel de cimento do diálogo plural, da liberdade responsável de expressão, de ponte entre todas as diferenças de opinião, de debate aberto e livre em favor do interesse geral.
Uma das mais eficazes receitas contra o avanço do populismo, da radicalização e das percepções transformadas em factos encontra-se na velha regra do jornalismo que recomenda a proximidade. Quanto mais perto se está do interesse ou das preocupações das pessoas, mais firme é a relação de confiança. Na vida pessoal ou de uma comunidade, a proximidade gera empatia, garante um maior espaço de tolerância e compreensão para com os outros, alicerça o diálogo franco e aberto. Na política, como no jornalismo, a proximidade cria mais facilmente canais pelos quais se consegue dar uma resposta mais credível ao principal problema dos nossos tempos: a perda de referenciais comuns, como a verdade sustentada em factos, o respeito pelo pluralismo e os direitos humanos, a crença que as diferenças de hábitos, doutrinas, raças ou identidades de género são uma riqueza que se consegue harmonizar no quadro de referências da democracia.
É por isso que os jornais e os jornalistas fazem falta. Por muitos erros e pecados que tenham cometido, e cometeram-se muitos, é no jornalismo que se podem ainda encontrar as âncoras de um debate público livre e plural. Um debate baseado na procura da factualidade que implica o tratamento da informação, o contraditório e uma deontologia fiscalizada por um órgão de regulação e contemplada em leis da República. Não admira que os jornais e os jornalistas estejam na linha frente dos ataques do radicalismo populista. Entre a mentira tolerada das redes sociais potenciada pelos algoritmos e a obediência aos princípios consagrados na Constituição (democracia, estado de direito, direitos humanos, respeito pela liberdade religiosa), essas forças sabem o lugar dos jornais e dos jornalistas.
Mas se esta verdade funciona como um princípio universal, ganha ainda mais pertinência no jornalismo local e regional. É no âmbito da sua audiência que se criam as células base da nossa vida em comunidade. É nos bairros, nas freguesias, nas cidades ou nas regiões que mais facilmente se contestam as mentiras das campanhas de desinformação. É aí que se podem preservar as raízes da cidadania que reconhecem a diversidade das pessoas e a diversidade do pensamento. Ou a crença que o estado de direito é a única fórmula que nos resta para garantir a liberdade, os direitos de personalidade ou a igualdade de todos perante a lei. Princípios e valores que, com todas as vicissitudes, tornam as sociedades europeias invejáveis. Sem um debate público livre e vigoroso nas comunidades locais, é impossível acreditar num debate público livre e vigoroso na comunidade nacional ou internacional.
É por isso que a celebração do centenário do Gazeta das Caldas tem de ser um momento para se acreditar num caminho que nos permita preservar os valores da humanidade e da democracia hoje tão ameaçados. Um jornal que consegue atravessar um século da nossa vida colectiva, do estertor da Primeira República ao Estado Novo, do 25 de Abril à integração europeia, tem de ter em si todos os ingredientes para nos ajudar a compreender as ameaças dos novos tempos. Tem de dispor de uma relação de confiança com os seus leitores à prova de bala. Se resistiu assim tão longamente à todas as vicissitudes da História é porque foi entendido, geração após geração, como uma entidade voltada para o interesse da comunidade que serve.
É por isso que esta celebração, sendo em primeiro lugar uma manifestação de gratidão e de festa a quem faz e quem lê o Gazeta das Caldas, é igualmente uma prova de força que sensibiliza todos os jornalistas. Um jornal define-se também como um acervo de memórias e nessas memórias podemos certamente encontrar outros momentos sombrios da nossa História e saber como foram enfrentados e vencidos.
Muitos parabéns ao Gazeta das Caldas, a todos o que o fazem e a todos os que, lendo-o, lhe dão sentido e garantem a persistência. A festa da vossa comunidade, é uma festa para o jornalismo. E, sendo-o, é igualmente uma festa para todos os que acreditam que a democracia liberal é, apesar de todos os seus defeitos, o melhor regime político que a Humanidade foi capaz de criar até aos nossos dias.


































