Breve reflexão sobre a Linha do Oeste

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A linha do Oeste vai fechar?
Acho que não, que não deve fechar. E são várias as razões que aconselham a não fechar. Vale a pena analisá-las, com o possível vagar.

A economia
De há uns anos para cá, o pensamento estratégico acerca do sistema ferroviário português tem tido, entre outras, três linhas dominantes: reduzir pessoal, encerrar linhas de fraco tráfego, investir numa rede de alta velocidade. E, graças a esta maneira de pensar, posta em prática, desapareceram centenas de quilómetros de via férrea – as extremidades das linhas do Minho, do Douro e de Guimarães, todas as linhas de via estreita do Nordeste Transmontano e da Terra de Basto, toda a Estrela de Évora, grande parte do complexo Vouga-Dão, ramais de Cáceres, Cantanhede, Aljustrel e Lousã. Nos últimos anos tudo isto desapareceu da paisagem sem que, aparentemente, a saúde financeira da operadora tenha melhorado significativamente. A explicação para este aparente insucesso parece simples – as linhas de fraco tráfego eram afinal linhas de escassa despesa porque a sua exploração já estava simplificada ao máximo.  Com o encerramento do troço superior da linha do Oeste e do troço final da linha do Alentejo irá certamente suceder o mesmo – perde-se a capacidade de angariar tráfego, ganha-se muito pouco, regride-se patrimonialmente.
A solução preconizada para a linha do Oeste ainda é mais intrigante: de Caldas da Rainha para cima a linha fica aberta mas apenas para serviço de mercadorias.  O serviço de mercadorias tem, em termos de movimento, as mesmas exigências que o serviço de passageiros e essas decorrem do tipo de cantonamento e não do tipo de tráfego. O serviço de passageiros tem outra característica importante: dispensa estações guarnecidas porque a compra de bilhetes pode ser feita a bordo.
O que custa caro numa linha de caminho-de-ferro é existir em condições praticáveis. Não se afigura, portanto, que acabar com o serviço de passageiros para Norte de Caldas da Rainha seja uma medida interessante do ponto de vista financeiro. E parece redutora, do ponto de vista comercial.

As ligações

Por outro lado, as hipóteses futuras de aumento de procura são numerosas e serão evidentes se forem corrigidas ambas as inserções, Norte e Sul, da linha do Oeste na restante rede. No extremo Norte, o término na Figueira da Foz é inadequado e impede a expansão fácil do serviço para o Norte do País, com ligações coordenadas em Coimbra-B ou mesmo, nada impede, com serviços directos da linha do Oeste para Porto, Braga, Guimarães ou uma qualquer estação na linha da Beira Alta – unindo assim as localidades mais significativas dos seis distritos litorais ou ligando o litoral ao interior.
No extremo Sul, os actuais términos em Meleças ou em Entrecampos Poente são igualmente de evitar pelo alongamento dos tempo de percurso que originam; a partida de Santa Apolónia, com paragem nas estações centrais de Lisboa (Roma-Areeiro, Entrecampos e Sete Rios), já hoje parcialmente praticada, parece constituir uma boa solução. Na alternativa e se a linha de Cintura estiver saturada, o serviço do Oeste poderia voltar à estação do Rossio, onde esteve sedeado longos anos.
Em contrapartida e para a Figueira da Foz, seria mais interessante esta localidade ser término de circulações directas para o Norte e não para o Sul: um serviço intercidades que ligasse a Figueira da Foz a Coimbra, Mealhada, Oliveira do Bairro, Aveiro, Estarreja, Ovar, Esmoriz, Espinho, Gaia e Porto e se prolongasse além – para terminar em Braga, Guimarães ou Régua – uniria os pólos mais significativos da Bairrada e do Baixo Vouga, aliviando a pressão na linha do Norte, podendo ainda ser coordenado com as circulações do Oeste. Este serviço já era considerado no Plano de Transporte de Passageiros da CP de Março de 1972, que não entrou em vigor. No fundo, o preceito que se quer pôr em prática é simples: aproveitar o efeito de rede para criar circulações de longo curso sem transbordo, que tornam atractivo o serviço ferroviário.

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A Linha do Oeste como alternativa
Ligada em Coimbra B e a Santa Apolónia à linha do Norte, a linha do Oeste torna-se assim, além de uma linha que materializa o eixo funcional de uma região que abrange dois distritos, uma alternativa à linha do Norte – embora, infelizmente, de inferior qualidade porque as suas características e o seu actual equipamento reduzem dramaticamente as suas possibilidades. Via única (no Oeste) contra via dupla (no Norte), via não electrificada (no Oeste) contra via electrificada (no Norte), menores velocidades permitidas no Oeste do que no Norte, controlo de velocidade existente no Norte e inexistente no Oeste: a capacidade de resposta é consideravelmente menor mas, ainda assim, inestimável no caso de um corte de via que impeça ou estrangule o tráfego na linha do Norte.
Mesmo em exploração corrente, o desvio de comboios não prioritários de mercadorias da linha do Norte para a do Oeste permitiria melhorar o diagrama da linha do Norte, resolvendo situações pontuais ou endémicas de falta de capacidade do eixo principal. A estação para proceder à articulação dos dois sub-sistemas até já existe – e é Alfarelos.  Para além destes casos, é de referir que, no Oeste, existem cimenteiras, fábricas de celulose e outras que podem aproveitar este canal para recepção de matérias-primas e escoamento de produtos acabados.
Se a intenção estratégica vier a ser tornar semelhantes as duas linhas – o que seria, muito provavelmente, uma medida de grande interesse funcional – então  terá de ser considerada a atribuição progressiva dos indispensáveis investimentos que lhe têm sido reiteradamente negados.

As malhas ferroviárias
A questão da conservação de malhas ferroviárias tem sido subestimada, mas é de importância crucial numa exploração em rede de modernas características.  A malha do Norte Alentejo desapareceu com o levantamento das linhas da Estrela de Évora e as malhas do Baixo Alentejo e do Oeste desaparecerão se for por diante o encerramento dos troços Beja – Ourique e Louriçal – Caldas da Rainha. Por sua vez, a electrificação da linha da Beira Baixa quedou-se por Belmonte, a menos de 30 quilómetros do entroncamento na Guarda, o que representa uma dificuldade acrescida na exploração económica do conjunto e na gestão das rotações do material circulante. A própria malha de Cantanhede, não obstante ter um tráfego reduzido de passageiros, constitui uma reserva de exploração que será imprudente desprezar, dadas as dificuldades que podem ocorrer no sobrecarregado troço Pampilhosa – Alfarelos. A possibilidade de utilizar o caminho-de-ferro no transporte de mercadorias pesadas (como o carvão para a central termo-eléctrica do Pego) ou de mercadorias em regime de “just-in-time”, integrado em cadeias logísticas multimodais em geral muito exigentes, requer uma fiabilidade de exploração que uma rede arborescente e muito heterogénea nas suas características não garante.
O turismo
Ao que parece, uma das mais prometedoras vias para a recuperação económica que se deseja reside no turismo – talvez a mais estável e a mais consistente das nossas exportações. O turismo, para ter carácter de excelência, carece de ser diversificado e a fórmula “praia + aldeamento ”, que alimentou o Algarve nos fins do século XX, parece uma veia a esgotar-se. Por outro lado, a população está a envelhecer e o tipo de turismo que a terceira idade, nacional ou estrangeira, aprecia é outro, menos fatigante. A região Oeste oferece uma das panóplias mais variadas de atracções turísticas de todo o país – castelos, conventos, termas, praias, santuários, lagoas, florestas, arqueologia, minas abandonadas, portos antigos, grutas, gastronomia, variedade – situados ao longo de um eixo tradicional, definido e materializado.  O transporte ferroviário, pelas ligações de longa distância que proporciona, será sempre um bom vector de turismo, se for esclarecidamente apoiado nas suas estações de paragem por transportes locais coordenados e por agentes competentes e afáveis. E presta-se a fórmulas inovadoras: o exemplo próximo do Transcantábrico, um comboio turistico de alta qualidade que liga Santiago de Compostela a San Sebastian e cuja viagem dura 7 dias, sugere um modelo de utilização do comboio no turismo que entre nós foi simplesmente ignorado. Como sucedeu, de resto, com outras referências turísticas que o caminho-de-ferro estranhamente esqueceu ou enjeitou – o Alto Douro, Património da Humanidade, a marina de Vila Moura, os aeroportos internacionais,  a cidade santuário de Fátima, as termas do distrito de Vila Real, o encanto rural das vilas e aldeias da Região de Lafões.  O turismo de qualidade pode ser um excelente campo de expansão da actividade ferroviária e a Região Oeste tem um acervo de valores paisagísticos e patrimoniais que beneficiarão com uma presença activa de um caminho-de-ferro actualizado.

As cidades
Os censos de 2011 confirmaram aquilo que há muito se antevia: a população da cidade de Lisboa está cada vez mais reduzida e mais envelhecida e a bipolaridade funcional – emprego em Lisboa, residência na periferia – obriga a um número colossal de deslocações diárias de elevado custo, em preço e em tempo perdido. Uma das medidas mais interessantes para se contrariar esta tendência consiste em estimular o desenvolvimento de cidades de média dimensão onde a residência, o emprego e o lazer possam co-existir harmonicamente, onde as pessoas se conheçam, atributo importante na manutenção da indispensável coesão nacional, e onde as curtas distâncias entre os diferentes pólos de actividade permitam uma qualidade de vida que o sistema suburbano reiteradamente nega, cidades essas que deverão ser dotadas de bons meios de transporte na sua relação. Espaçadas ao longo do eixo central da região Oeste, as cidades de Torres Vedras, Caldas da Rainha, Alcobaça e Leiria, que não têm de ser construídas do nada porque já existem e têm história, tradição, estruturas consolidadas e uma cultura de séculos podem ter um futuro desempenho interessante, se forem interligadas por um eixo ferroviário de exploração actualizada – cómoda, frequente e discreta – que as ligue entre si e aos pólos nacionais de Lisboa e Coimbra.

O futuro
O nosso país dispõe de uma larga e recente rede de auto-estradas e de uma elevadíssima taxa de motorização – 537 carros por mil habitantes, o 12º valor mundial em 140 países – o que pode levar a pensar que os dias do caminho-de-ferro estão contados e que o discurso em torno dos atributos do sistema ferroviário é serôdio e romântico. Mas uma análise mais demorada talvez aconselhe outra postura. E isto por três particulares razões.
A primeira decorre da observação em redor: todos os países de elevada taxa de motorização dispõem, em regra, de modernos, eficazes, alargados e, muito provavelmente, muito dispendiosos sistema ferroviários – como acontece com a França, a Itália, o Reino Unido, a Alemanha, a Holanda, a Dinamarca e até com os Estados Unidos onde, para além do importante transporte de mercadorias por via ferroviária, foi retomado o serviço de passageiros – o celebrado Amtrak. Isto poderá querer dizer que a solução do problema permanente do  transporte de passageiros fica mais económica e mais racional quando os utilizadores dispuserem de vários sistemas coordenados e complementares – estrada tradicional, auto-estrada, comboio convencional de exploração modernizada. Cada país constitui um caso singular porque, regra geral, tudo é diferente – quer no que respeita a instalações físicas, quer nos modelos de exploração – mas a persistência de um mesmo padrão parece querer significar alguma coisa.
A segunda prende-se especificamente com os recursos do nosso país, que tem de importar todo o petróleo que consome e até o carvão, porque o nosso é de fraca qualidade. A fase histórica da electrificação do território impulsionou, no seu tempo, a electrificação da via férrea, iniciativa que significou, em termos energéticos, uma saudável diversificação que julgo dever ser continuada, agora que o aproveitamento das energias renováveis está na ordem do dia. Mas, mais tarde ou mais cedo, provavelmente ninguém saberá ao certo quando, os combustíveis fósseis irão exaurir-se não sem antes se ter de atravessar um período de duração incerta de aumentos persistentes de preço. E os sistemas de transporte e as soluções de ordenamento de território que mais frugais forem no consumo de energia serão as que vão ter, certamente, a maior probabilidade de sobreviver.
A terceira, por fim, prende-se com a preservação ambiental na suas diversas facetas – emissões, ruído, protecção do ambiente. A tendência, que parece irreversível, é para suster e depois reduzir a presença das actividades que contribuam para degradar o ecosistema e o transporte individual, de passageiros ou mercadorias, irá encontrar progressivamente cada vez mais obstáculos à sua livre operação.

Coesão e imaginação
Em 1943 realizou-se nas cidades de Leiria e das Caldas da Rainha, entre 23 e 26 de Setembro, o I Congresso das Actividades do Distrito de Leiria, que incluiu ainda visitas a Maceira-Liz, Monte Real, Batalha e Alcobaça. O Livro do Congresso, um volume com mais de 400 páginas publicado no ano seguinte, é um valiosíssimo levantamento de todas as valências do Distrito de Leiria, sob todos os pontos de vista que se queiram considerar – cultural, social, industrial, assistencial, turístico, agrícola, florestal, monumental, termal.  Julgo que, muito para além do teor concreto das comunicações, em regra de elevada qualidade, o Livro do Congresso transmite, quase 70 anos decorridos, uma imagem viva de coesão regional de terras e gentes que impressiona e que merece atenta ponderação – porque recorda a necessidade premente de agregar e empenhar pessoas e instituições na defesa dos seus interesses comuns. Na presente conjuntura, a mensagem do I Congresso é de uma flagrante actualidade que importa reter.
Isto e um pouco de imaginação nas soluções poderão ajudar-nos a encontrar um caminho para sair da crise – caminho que as vias ortodoxas e a persistência em modelos esgotados parecem não conseguir descobrir.

Por: Eduardo Zúquete*
* Engenheiro civil

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1 COMENTÁRIO

  1. Já estamos no séc. XXI! As organizações do território dos anos 40 e 70 já não fazem sentido.
    Com a monopolização dos dois grandes centros urbanos, Lisboa e Coimbra, é aberrante manter a mesma organização do território do século passado.
    A linha do Oeste é apenas mais um reflexo disso.