AO SERVIÇO DA RAINHA II

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Gazeta das Caldas
O Cardeal

capa A figura de D. Jorge da Costa permanecerá para sempre envolta na penumbra, entre a lenda e o mistério, incompreensível no contexto social de uma época em que a condição do nascimento dum homem o acompanhava desde o berço até ao túmulo.
Dizem as crónicas que nasceu pobre, filho de uma forneira de Alpedrinha, e que à sua invulgar inteligência se deve a fulgurante ascensão que o tornou príncipe da Igreja e um dos homens mais poderosos da Cristandade.
Em circunstâncias que se desconhecem, abandonou a terra onde nasceu, sendo acolhido no colégio e hospital de Santo Eloy, em Lisboa, ao que dizem, por influência de um familiar. Ali estudou latim, filosofia e teologia, vindo a ser escolhido no ano de 1455 para mestre e confessor da infanta Dona Catarina, filha mais nova de D. Duarte, irmã de el-rei D. Afonso V, de quem se tornou também confessor e predileto conselheiro, retirando o máximo partido da amizade régia que o haveria de tornar cardeal.
Eminência parda da corte, as manobras de conquista de mais poder e influência desagradaram ao Príncipe Perfeito, que, segundo Garcia de Resende, pregou ao cardeal o maior susto da sua vida: ameaçou afogá-lo na ponte de Alpiarça enquanto lhe chamava “cardeal tam mal ensinado, desagradecido e de maa condiçam”.
Quando era arcebispo de Lisboa, em 14 de Fevereiro de 1467, D. Jorge visitou a Igreja de Santiago de Óbidos, impondo 38 procedimentos aos clérigos da vila, entre os quais: que constranjam os fregueses a batizar os filhos até 8 dias após o nascimento, se necessário, com recurso à força; que admoestem os fregueses “filhos e filhas, mancebos e mancebas de sete anos para cima”, no primeiro domingo após a Epifania, para se confessarem até à quaresma seguinte; que os fregueses se confessem aos seus priores, não devendo estes aceitar “alvarás” de confissão assinados por outros clérigos; que não seja dada “vestimenta para dizerem missa” aos sacerdotes que se encontram de relações cortadas com os colegas; etc. Termina ordenando, sob pena de excomunhão, “que por todo o mês de Março nos paguem ou mandem pagar esta nossa visitaçam”.
Apesar do respeitoso afeto da rainha Dona Leonor, o cardeal não se sentia seguro na corte, e no dia 14 de junho de 1480, um ano antes do falecimento de D. Afonso V, quando o reino já se encontra nas mãos do príncipe, deu entradaplaca rua em Roma, onde serviria quatro papas – Sisto IV, Inocêncio VIII, Alexandre VI e Júlio II, tornando-se o mais influente cardeal da Cúria.
Em Roma D. Jorge acumula dignidades eclesiásticas, comendas, bens e rendimentos, para si e para os seus familiares, como jamais ocorrera no reino. Entre muitos outros títulos e rendas, adquiriu a Frei Nicolau Vieira, Abade de Alcobaça, num negócio de estranhos contornos, a comenda da Abadia com as rendas das 14 vilas e jurisdição sobre um imenso território que confinava a sul com o termo de Óbidos, terra da rainha, com o rio de Salir a fazer a estrema.
Quem não apreciou o negócio, apesar da sua legitimação por bula do papa Sisto IV, foi D. João II, a quem nas palavras de Frei Manuel dos Santos “lhe custava ver o dito D. Jorge na Real Abbadia, veyo ao Mosteiro e nelle tomou entrega da Casa; a uns dos officiaes do Comendatario degradou, a outros mandou levar presos, e todos privou de governo”. O cardeal viu-se constrangido a ceder a comenda de Alcobaça a Isidoro de Portalegre, mas recuperou-a com o falecimento deste.
Ao contrário do que acontecia com o rei, D. Jorge mantinha uma relação de grande proximidade e afeto com a rainha Dona Leonor, cujos interesses sempre defendeu em Roma. Em 1507 a rainha enviou a Roma o seu capelão Diogo Dias, com uma missiva de cujo teor se depreende que foi o cardeal quem redigiu a primeira parte do Compromisso do Hospital: «Direis da minha parte ao Cardeal D. Jorge da Costa que lhe pedimos mui affectuosamente queira ver de verbo ad verbum o treslado do compromisso que temos feito para o Hospital da nossa Villa das Caldas, o qual por sua mão foy começado, e porque nenhuma cousa nossa não queriamos nunqua, se fosse possível fazer sem conselho seu, e autoridade, principalmente esta do compromisso».
O papa Júlio II aprova o Compromisso no ano seguinte, como faz com todos os documentos que lhe são apresentados por D. Jorge da Costa. Mas a grande batalha está por travar, a única em que El rei D. João II sairá vencido: a da sua sucessão. O príncipe herdeiro morre em circunstâncias dramáticas. O rei pretende colocar no trono o seu filho ilegítimo D. Jorge. A rainha não aceita e toma o partido do seu irmão, D. Manuel. Tudo se decide na Cúria Romana, onde o cardeal tem uma palavra decisiva, nunca contrariada pelo papa. O partido da rainha é o óbvio vencedor. O cardeal vinga-se do rei, a quem teme apesar de o respeitar. A rainha oferece o trono ao irmão. O rei, imenso e poderoso, que ousou sonhar um reino para além do mar e das fronteiras daquele que herdou, morre sozinho no Alvor, rodeado apenas por um punhado de fiéis servidores. É esta a história que João d’Óbidos nos conta na obra “Príncipe Perfeito – Rei Pelicano, Coruja e Falcão”, onde se fala de lealdades, de traições e de envenenamentos.
O Cardeal Alpedrinha vem a falecer no ano de 1508, com 102 anos de idade, segundo reza a lápide mandada gravar pelo papa Júlio II.

Por: Carlos Querido

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