Já foi referido neste jornal o modo como A cidade dos pássaros, espectáculo do Teatro da Rainha no Parque D. Carlos, convocando a cidade, a tocou amplamente. Foram quatro dias de lotação excedida, o que significa que houve duas sessões com muita gente sem lugar sentado e outras duas em que ao povo sentado correspondia uma centena de espectadores em pé. Por outro lado, as dezenas de mensagens que recebemos para prolongar a sua carreira, provam que haveria ainda muito mais pessoas a querer ver esta comédia política, com voo de parábola, não fossem pássaros as figuras de humanidade na representação e humanos os que conduzem os processos da desumanidade na peça, no caso, o ditador Pisteteros — criatura-caricatura, maníaca das grandezas e obcecada por um muro que exclua os que não são seus semelhantes na pele e no estatuto.
As razões desse sedução creio que são de alguma clareza:
1) O facto de o espectáculo acontecer num lugar aprazível, no Parque D. Carlos, numa implantação cenográfica — da autoria do arquitecto e designer José Serrão — que se articulava com um fundo de copas de árvores que a fechavam, sendo que a cenografia era uma estrutura em três andares que ficcionava uma cidade-gaiola-por-patamares, metida num cerrado, em que os pássaros justamente se protegiam (escondiam) dos humanos, como hoje acontece ainda com tribos índias na Amazónia. A grandeza da cenografia tocou, muitos espectadores o referiram.
2) Deu também o seu contributo para a eficácia e beleza do espectáculo, a unidade do trabalho de cena resultante da competência do jogo dos intérpretes a que acresceu a qualidade das máscaras — da Origami do Filipe Feijão — e do guarda-roupa — da Mafalda Santos. Deste ponto de vista é importante referir a juventude do núcleo profissional protagonista — Fábio Costa, Mafalda Taveira, Alexandre Calçada e Cibele Maçãs — que assegurou um grande rigor de execução das acções físicas/elocução textual, além de, por assim dizer, ter sido o motor anímico da representação.
3) Junte-se a isso a integração dos elementos amadores, em particular dos elementos da Universidade Sénior que, com a sua poética específica de jogo, acrescentaram novas qualidades à representação. Gostaria de aqui referir os trabalhos do Manuel Freire, do António Plácido e do Victor Duarte.
4) E há um dado final que é importante salientar: não se tratou de entretenimento larvar, pelo contrário, tratou-se de um teatro popular, isto é, não popularucho, de natureza cómica-política. Os males das actuais democracias demo-liberais, da corrupção aos amiguismos, da burocracia à manipulação, aos métodos hegemónicos do que constrói uma sociedade alienada/manipulada, foram no espectáculo desmontados. E de um modo que nada deve ao didactismo sem imaginação. Pelo contrário, A cidade dos pássaros, adaptação de Bernard Chartreux de As aves, de Aristófanes — o inventor da comédia política e de um tipo de jogo burlesco, de alguma forma -, é um gesto de profunda imaginação, como o não é, o humor directo e obrigatório ( por vezes mesmo martelado e com um fundo conservador), da piada feita propositadamente para rir. As margens do humor são aqui outras e apelam não propriamente ao riso garantido, mas sim à elasticidade de humor interpretativo dos espectadores.
5) Podemos de dizer que a “pólis” esteve em A cidade dos pássaros e que se divertiu com o seu fulgor crítico, observando-se a si mesma no espelho amplo, inventivo e verdadeiro, do teatro.
6) Caldas é cada vez mais uma cidade de artes.
Fernando Mora Ramos
fernando.mora.ramos@gmail.com

































