A supressão dos comboios de passageiros na linha do Oeste das Caldas para Norte: “Estratégia” de transportes ou “Emergência” face à indigência?

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notícias das CaldasO recente anúncio da intenção do Governo em eliminar diversas linhas férreas e suprimir o serviço de passageiros noutras, não pode, em alguns casos, deixar de suscitar a maior das perplexidades, pela tendência inversa ao que no restante mundo se constata.
Portugal tem das mais baixas taxas de utilização de transportes colectivos, particularmente ferroviários e, mais uma vez caso singular, é o único da Europa que, nos últimos 20 anos, registou uma forte diminuição na utilização do transporte ferroviário.

Se tal pode encontrar uma pequena raiz na características geográficas e demográficas do nosso país, a maior explicação reside em anos de políticas de mobilidade que têm fomentado de forma desproporcionada o transporte individual e numa gestão muito deficiente das empresas de transporte, com uma ausência notória do papel que compete ao Estado como regulador do sector, não fomentando uma efectiva intermodalidade fora dos dois principais núcleos urbanos do país.
Como resultado de erradas políticas, de gestão danosa de recursos públicos em proveito de diversos grupos de interesses e da promoção de um certo modelo de desenvolvimento incompatível com a capacidade de produção de riqueza do país, os nossos governantes – e cada um de nós! – conduziram o país a uma situação de indigência face à qual nos vemos na dependência de empréstimos externos para fazer face às mais elementares despesas do Estado.
Como tal, espera-nos a muito curto prazo um verdadeiro retrocesso civilizacional, através da eliminação de prestações publicas a que estávamos habituados, desde a saúde, à segurança social, aos transportes, à cultura, enfim, a tudo o que considerávamos integrar-nos no “mundo desenvolvido”.
Mas, sendo assim, então que tal seja assumido e se diga claramente que o Estado não tem condições para manter determinadas funções que há mais de meio século tem assegurado porque não tem dinheiro.  O que não é minimamente sério e suscita a nossa frontal recusa é que se tente justificar alguns destes retrocessos mediante uma máscara de lógica e tecnicidade, assente em raciocínios e números falaciosos.
Neste campo está a apresentada justificação para a anunciada supressão do serviço de passageiros na linha do Oeste para norte das Caldas.  Importa assim explanar algumas questões fundamentais para que a discussão e decisão possam ser feitas em plena consciência por todas as partes envolvidas, em vez do “manto diáfano da fantasia” que sobre a questão foi, parece-nos, propositadamente lançado.

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Contributos sintéticos para a defesa do serviço ferroviário de passageiros na linha do Oeste

A linha do Oeste constitui um eixo ferroviário de elevada capacidade de transporte ao longo de uma das mais densamente povoadas regiões do país.
É uma infra-estrutura de transporte que tem a potencialidade de permitir a movimentação de passageiros e mercadorias em médias e longas distâncias, de forma socialmente sustentável e responsável, tendo em conta a eficiência energética, o impacte sobre o meio ambiente e a menor emissão de poluentes para a atmosfera por unidade transportada, permitindo aliviar o congestionamento rodoviário nas estradas e cidades, libertando-as para as situações em que o modo rodoviário é adequado.
A linha do Oeste, foi renovada integralmente em toda a sua extensão entre 1990 e 2004 e tem boas características de infra-estrutura, particularmente quanto à via e obras de arte, permitindo velocidades de linha entre 90 e 120 km/h.  O traçado é sinuoso das Caldas para sul e bastante favorável das Caldas para norte, pelo que neste troço a velocidade máxima permitida é praticamente de 120 km/h na sua integralidade (salvo zonas pontuais), mas facilmente e com muito reduzido investimento poderia ser elevada para 160 km/h pelo menos.
O serviço que se pretende suprimir representa menos 0,9% do prejuízo financeiro anual da CP, o que é um valor irrisório e inadmissível como justificação para a supressão que se pretende fazer, especialmente quando se sabe das enormes ineficiências funcionais daquela empresa e dos desperdícios existentes em funções fora do seu “core-business”. Economia semelhante ou superior seria facilmente obtida reduzindo os enormes custos de estrutura da empresa e melhorando a produtividade dos factores de produção.
O prejuízo financeiro da exploração de uma linha férrea não é, de forma alguma, extrapolável para o prejuízo global do transporte ferroviário.  O prejuízo financeiro tem a ver com políticas de gestão do operador e com os seus custos operacionais.  Pelo contrário, a contabilização dos prejuízos e benefícios de um modo de transporte envolve muitos outros factores, designados externalidades, que reflectem o impacto social desse modo de transporte como um todo (custos/benefícios ambientais, custos de tempo, congestionamentos, acidentes, disponibilidade de capacidade noutros modos alternativos, etc).  Por isso, o facto do troço da linha do Oeste em apreço ter prejuízo de exploração não significa que tal, globalmente para o país, implique também um prejuízo. É possível que a supressão do serviço venha a representar mais custos para o país.  Essa conclusão ou a sua contrária necessita de elementos que não foram apresentados para análise.
A eliminação de custos em actividades acessórias na CP e na REFER (empresas satélite daqueles grupos, pedreiras, etc.), em consultadorias inúteis, em marketing e patrocínios de eventos irrelevantes, em pessoal administrativo e “prateleiras douradas”, etc., seguramente traria iguais ou superiores economias.
De um total de 187 mil passageiros transportados em 2010 no troço cujo serviço se pretende suprimir, o valor anunciado para a ocupação média de 53 passageiros por comboio como justificativo adicional para a supressão, é um dos tais números que não são sérios e que nada significam.
Trata-se de um valor global para o qual se identificam imediatamente os seguintes problemas que colocam em evidência a sua falácia e inutilidade para o fim a que a sua apresentação se destina:
a) Não discrimina entre os diversos comboios que circulam na linha, contabilizando de igual forma aqueles que efectivamente circulam vazios por se realizarem em horários que a ninguém servem, e os restantes; por exemplo, se o comboio das 6h20 das Caldas para a Figueira circula vazio e o das 8h30 circula com taxa de ocupação de 106 passageiros, a ocupação média será de 53…
b) Não diferencia entre o serviço regional e “rápido”, pelo que não se tem a percepção de quais os serviços que efectivamente são procurados pelo mercado.
c) Não discrimina entre as diversas estações da linha, não evidenciando qual a procura efectiva; um comboio das Caldas para a Figueira que circule com 106 passageiros entre as Caldas e Leiria e vazio daí para cima, aparecerá nesta estatística como tendo uma ocupação média de 53…
Acresce que a linha do Oeste tem vindo, desde 1990 a ser alvo de uma constante degradação do serviço prestado, através da implementação de horários piores e de uma redução do serviço para norte das Caldas, particularmente na ligação à linha do Norte em Coimbra.  Tal situação é particularmente de estranhar na medida em que é precisamente na ligação de todo o eixo Torres Vedras – Leiria para Coimbra que a linha do Oeste é competitiva com o modo rodoviário, demorando menos tempo e sendo mais barata que o autocarro, e competitiva em preço com o automóvel.  Paradoxalmente, há apenas uma ligação directa a Coimbra, num horário pouco conveniente, quando existem 10 autocarros diários da Rede de Expressos…  Por razões históricas e operacionais, prefere a CP enviar os seus comboio para Figueira da Foz, destino para o qual tradicionalmente não há mercado.
A eliminação do serviço em causa terá repercussões na diminuição do tráfego nas linhas da qual a linha do Oeste é afluente (linha de Sintra, linha do Norte e ramal de Alfarelos), numa espiral descendente de diminuição do tráfego globalmente prejudicial para os resultados de exploração ferroviária, aumentando assim o prejuízo, até em linhas que porventura eram beneficiárias.  Este efeito está plenamente demonstrado, não só por inúmeros exemplos estrangeiros, mas principalmente pelos resultados dos encerramentos ocorridos no nosso país entre 1984 e 1990, que não diminuíram o aumento dos prejuízos da CP e da REFER, mas contribuíram para a redução global do tráfego ferroviário, com consequências negativas adicionais para os resultados da CP.
A seguir ao troço de Caldas para norte, seguir-se-á inevitavelmente, a supressão do serviço pelo menos no troço entre Torres Vedras e Caldas, porque o mercado abandonará progressivamente um modo de transporte que cada vez lhe oferece menos serviços e promove a sua transferência para o transporte privado.  Como exemplo, importa referir que a receita da venda de bilhetes da estação das Caldas é superior nos bilhetes para norte do que para sul, pelo que com a supressão do serviço em apreço, a receita da estação cairá mais de metade, progredindo a tal espiral descendente a que acima se aludiu.
Acresce que o troço de Caldas para norte onde se pretende suprimir o serviço de passageiros manter-se-á aberto para circulação de mercadorias, pelo que os custos da sua utilização no tráfego de passageiros são marginais uma vez que os meios de produção existem e ficarão com menor produtividade caso não sejam utilizados, o que é particularmente grave numa infra-estrutura de elevado valor cuja rentabilidade decorre da sua máxima utilização.
No momento difícil que o país atravessa, e previsivelmente atravessará durante os próximos anos, é expectável que haja um significativo aumento da procura do transporte colectivo de passageiros a fim dos cidadãos diminuírem os seus custos com o transporte, momento em que menos sentido faz que se retire o mais eficiente meio de transporte ao seu dispor.
A utilização e promoção do transporte ferroviário é aquela que garante a menor importação de petróleo, pela maior eficiência energética de transporte que permite, com reflexos positivos para a balança comercial do país.
A utilização do transporte ferroviário é aquela que minimiza os custos externos sociais em acidentes, com reflexo em economias no sistema nacional de saúde e segurança social.
A utilização do transporte ferroviário permite a maior regularidade e fiabilidade no transporte de pessoas, sem atrasos e de forma segura, contribuindo para a produtividade das empresas.
Por estas e outras razões, não faz sentido eliminar um serviço ferroviário existente, numa infra-estrutura em boas condições de conservação (que é caso único nas linhas cuja supressão de serviço se anunciou) e com bom potencial de desenvolvimento a baixo custo.  Faz sentido, sim, eliminar os erros na forma como é presentemente explorado e promovê-lo para que melhor se adeqúe à procura potencial existente, captando o mercado de outros modos de transporte mais caros e prejudiciais para a sociedade como um todo.
O “Plano Estratégico de Transportes” que sustenta decisão de suprimir o serviço ferroviário de passageiros, entre outras, na linha do Oeste a norte das Caldas, deixa a sede do distrito de Leiria, com 43 mil habitantes, sem transporte ferroviário. Nem Alta Velocidade nem linha do Oeste, a qual, se bem explorada, seria capaz de dar uma resposta de mobilidade inter-regional adequada à não realização da linha de alta velocidade.  Se tal decisão é considerada “estratégica” para o sistema de transportes em Portugal e para a região Oeste, devemos temer que decisões “não-estratégicas” nos reservam.  Trata-se de um logro ainda maior do que o aeroporto da Ota e todas as “compensações” que foram prometidas.
Este dito “Plano Estratégico” melhor seria designado de “Plano de Emergência de Transportes”, pois será aquele para o qual o país terá dinheiro neste momento, mas ainda assim outras opções poderiam ter sido escolhidas para reduzir custos.

Propostas para melhoria do serviço, com vista à diminuição do prejuízo financeiro da linha do Oeste a custo zero:

No imediato e a custo zero:

Reformular a oferta comercial da linha do Oeste, nomeadamente quanto à grelha horária, nos seguintes moldes:
1. Eliminar a completa separação de horários e serviços que existe nas Caldas da Rainha entre os troços a sul e a norte, para a qual não existe qualquer razão objectiva.  Existe procura intra-regional no eixo Torres Vedras – Leiria que é totalmente afastada com a actual situação de horários.
2. Privilegiar o destino “Coimbra-B” como destino a norte dos comboios do eixo Torres Vedras – Leiria (em detrimento da Figueira da Foz), assegurando ligações eficazes para o Porto e linha da Beira Alta.
3. Potenciar horários que permitam as ligações pendulares entre Marinha Grande e Leiria e entre Leiria e Coimbra, mercado para o qual não há resposta.
4. Assegurar uma adequada articulação com o transporte rodoviário de passageiros regional, funcionando de forma conjugada como “feeder” do ferroviário, particularmente nos casos de Alcobaça e Nazaré em relação à estação do Valado, e entre Leiria e Leiria-estação.  Aqui os municípios teriam um papel fundamental, demonstrando igualmente empenho na manutenção do serviço ferroviário.
5. Promover uma estrutura tarifária coerente que não penalize as viagens comn transbordos.
Estas medidas, de custo nulo ou muito reduzido permitiriam criar as condições para voltar a captar o mercado perdido ao longo de anos de péssimas decisões de gestão operacional, diminuindo o deficit de exploração, o que necessariamente demoraria tempo, facto de que é preciso estar consciente.

A médio prazo, com investimentos modestos graduais:
1. Instalação de sinalização electrónica e telecomando das estações, com criação de zonas de cruzamento activas, permitindo melhorar a gestão do tráfego, tornar mais fluida e segura a circulação e permitindo reduzir custos com pessoal das estações.
2. Beneficiação do material circulante da linha, de forma a criar condições mais atractivas de transporte.
3. Aumento da velocidade máxima para 140 e 160 km/h, essencialmente por medidas administrativas e eliminação/automatização de passagens de nível (apenas benéfico se conjugado com material circulante novo ou alugado – ver abaixo).
Permitiria melhorar os horários, com reduções no tempo de viagem e principalmente melhor regularidade no serviço prestado.

Outros investimentos:

1. Com novo material circulante seria possível melhorar significativamente os tempos de percurso e condições de viagem.  No entanto, na presente situação do país, julga-se não ser possível tal investimento. Uma hipótese muito mais barata seria o aluguer ou aquisição de material circulante a Espanha, que o tem disponível e permitiria melhorar os tempos de percurso.
2. A tão referida electrificação, sendo um investimento bastante caro, não terá tanto benefício como as medidas acima referidas.  A CP não tem material circulante eléctrico disponível para fazer circular na linha e está fora de questão adquirir novo ou em 2.ª mão (não existe).
3. A também muitas vezes referida duplicação da linha, não faz sequer sentido para uma linha como a do Oeste uma vez que não tem, nem terá, tráfego que o justifique.
Nelson Rodrigues de Oliveira

Engenheiro civil pelo IST
Pós-graduado em engenharia ferroviária pela FEUCP

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