A Praça – fantasia em plágio maior

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notícias das Caldas

notícias das CaldasPrimeiro tiraram a Câmara Municipal da praça e eu não me preocupei porque a nova sede ficava mais próxima de minha casa; depois proibiram os carros de estacionar junto da praça e eu não me preocupei porque não costumava ir à praça de carro; a seguir obrigaram as vendedeiras da praça a terem bancas todas iguais e eu não me preocupei porque não vendia na praça; até que retiraram o mercado da praça e eu deixei de poder lá ir fazer compras como de costume. Como não me preocupei com a praça enquanto ela existia, agora ninguém se preocupa comigo por já não poder lá ir.
(e eu em miúda:
– Não posso pisar o preto da calçada, não posso pisar as pedras pretas, não posso pisar o preto, não posso pisar…
– Então menina, que maneira é essa de andar? Sempre aos pulos! Esteja lá sossegadinha! Se já se viu uma menina andar assim!)

A praça era o centro do mundo. Depois o mundo cresceu, perdeu o centro, e a praça deixou de existir. Nas Caldas ninguém ia ao mercado ou à feira. Todos “iam à praça”. “Ir à praça” era o mesmo que “ir às compras”. A “praça” era na praça. A função sobrepôs-se ao nome do lugar, e todos lhe chamavam “Praça da Fruta” em vez de “Praça da República”, designação oficial.
(e eu em adulta:
– Ainda agora me franzo toda por dentro para não saltar na praça, de branco em branco, como fazia em criança)
As praças são sempre sós, a horas mortas. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheias de submissão ao serviço do impossível. Como nós.
Luís Pacheco sai do café Central à noite. Vê Ferreira da Silva do outro lado da praça. Baixa-se, coloca as mãos no chão, bamboleia o corpo, mia para a lua, no alto, revirando a cabeça, o mais parecido possível com um gato. O mano (Ferreira da silva) imita-o do outro lado sem hesitações. São agora dois gatos que se miram e remiram como quem está ao espelho um do outro. Aproximam-se. Encostam os dorsos um ao outro e miam para a lua. Eu nem sei se os caldenses já repararam bem, mas devem a este rapaz uma nova visão: pensa Luís Pacheco sobre Ferreira da Silva.
E as pessoas que à noite “fazem piscinas” na praça: para baixo e para cima, frio ou calor, sempre: quais Sísifos cumprindo o castigo infligido por deuses a horas mortas! Com certeza não se importam de pisar o branco ou o preto. Não se importam da cor que pisam. Ou importam? E sentem-se franzidos por dentro, como eu?
(e eu agora
Para quê visitar a praça se já não consigo saltar?
Se mal consigo andar?
Se piso branco e preto?
Se já não há praça na praça?)
O que podemos esperar de um lugar? Que não nos atraiçoe. Que se torne nosso. E quando já não se parece com a imagem que dele guardámos na memória? A praça tão diferente das fotografias que guardo dela. Agora nada acontece na praça. Volto à praça como quem regressa ao local do crime. Fotografo-a mentalmente uma e outra vez.
Invoco-vos meus autores, companheiros de viagem, aqueles que me acompanharam vida fora; eles perfilam-se junto a mim, falam por mim, falam em mim. Salvé, saúdo-os. Salvé Bertold Brecht, António Lobo Antunes, salvé! Concedei-me a vossa eloquência, dai-me as vossas palavras generosas. Salvé, Ana Hatherley, Gilles Deleuze, Walter Benjamin, salvé! Bem-vindos ao meu texto, à minha casa, à casa da minha escrita. Salvé, guardiães das palavras, poetas, fazedores do mundo.
Caminho e coloco tudo o que encontro num saco, com a condição de que me coloquem a mim num saco também. Apenas ideias: o encontro, o devir, o roubo, as núpcias, esse entre dois das solidões. A praça está deserta. A praça é um deserto. Nós somos desertos, mas povoados de tribos, de faunas, de floras. A praça. A praça é silêncio. A memória é um silêncio que espera, uma provação da paciência. Todo o espaço é de vidro – um vidro que não parte por fora, mas parte por dentro. A praça parte-se-me por dentro.
(e eu agora,
A voz imaginária da Júlia da infância:
Até que enfim, menina, só em velhinha é que ganhou modos
Quem havia de dizer?)
Os lugares são interstícios. Intervalos entre um lugar e outro; o tempo também: entre passado e futuro. A praça debateu-se com a questão do tempo, transformada em progresso, em modernidade. O tempo, esse grande escultor… “Que as frutas e os legumes eram vendidos em deficientes condições higiénicas. Que as vendedeiras e as freguesas apanhavam muito frio ou muito calor, conforme a estação do ano. Que o progresso… o progresso não se compadecia”. Diziam os defensores do progresso.
Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval.
(e eu agora,
Como não pisar o preto se mal consigo andar?
E a Júlia, uma voz dentro de mim:
Foi preciso chegar a velhinha para andar como deve ser)
Inutilmente tentarei descrever-te a praça de bela calçada de pedras brancas e pretas. Poderia dizer-te das ruas em redor, como são as aberturas dos arcos dos pórticos, de quantas telhas são cobertos os telhados; mas sei que seria o mesmo que não te dizer nada. Não é disto que é feita a praça, mas sim das relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado. É desta onda que reflui das recordações que a praça embebe como uma esponja e se dilata. Uma descrição da praça como é hoje deveria conter todo o passado da praça. Mas a praça não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes.
Sento-me num banco da praça e convido os meus autores a sentarem-se a meu lado, a descansarem um pouco comigo ao fim de tantos dias de viagem. Invoco-os um por um. Um por um os invoco. Salvé Ítalo Calvino, Jorge Luís Borges, Fernando Pessoa, (Bernardo Soares): Salvé! Salvé Eugénio de Andrade, Virgínia Wolf, Margueritte Yourcenar, Salvé! Não me abandoneis agora que a vida se escoa entre os meus dedos enrugados e gastos!
( e eu em velhinha, a chamar: Júlia!…
E ela a fugir-me, a voz da infância.
Vem ralhar comigo, não me abandones!
Para quê se já não salto de preto em preto?
Ou seria de branco em branco?)
Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam, momentâneas e ávidas; o vermelhão de um oleiro, a abóboda carregada de estrelas que também eram deuses, a lua de onde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne do javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. E o esquecimento? Onde estavam guardadas as coisas que esquecera? Esquecimento a mais autêntica forma da memória.
Luís Pacheco chega da Rochida. Está na praça das Caldas. Veio todo esse trajecto a pé. Pensa: a ida lá para cima foi uma tentativa que deu em disparate. Eis a minha explicação. Cá em baixo havia a sopa a dois passos, o banco do Montepio para os tremeliques meus, farmácia, os fiados de dois anos de estadia, o café que fia a bica, o bagaço. Agora ir buscar a sopa é uma aventura: vai ela? Fico por lá aos saltos e a fazer de ama-seca. Intimamente Luís Pacheco amaldiçoou o dia em que deixara de viver perto da praça.
(E eu agora
A praça ali e eu pisando
O branco e o preto
Indiscriminadamente:
Já não se faz a praça na praça…)
O meu quarto de criança dava para a praça, as janelas do meu quarto sobre e praça, e eu sentada à janela do meu quarto. Janelas do meu quarto, do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (e se soubessem quem é, o que saberiam?) Dais para o mistério de uma praça cruzada constantemente por gente, para uma rua inacessível a todos os pensamentos, real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens. Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada do nada. Estou hoje vencida, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcida, como se estivesse para morrer, e não tivesse mais irmandade com as coisas senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da praça a fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada de dentro da minha cabeça, e uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexa, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividida entre a lealdade que devo à tabacaria do outro lado da praça, como coisa real por fora, e à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, desci dela pela janela das traseiras da minha casa. Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores. E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Luís Pacheco está sentado a uma das mesas do café Central. O estômago dói-lhe da fome, os olhos ardem-lhe da noite mal dormida e do bagaço. É uma manhã de Primavera do ano de 1964. A folha branca, um convite à sua frente. Escreve:
“Gosto das Caldas da Rainha. Tem lojas montras muito bonitas, talhos cheios de carne tudo quanto é bom e uma especialidade regional deliciosa: as morcelas de arroz. O mercado das Caldas é dos mais falados do País, o peixe fresquíssimo! Vem da Nazaré ou de Peniche parece vivo. E a frutinha? Os tomates? Os pêssegos? Nada de melhor neste subalimentado povinho. Tal abundância alegra sim alegra a vista aquece as tripas ensaliva-nos espevita o paladar. Os tubos digestivos dos Caldenses são dos que mais bem percorridos fornecidos andam. E a doçaria? Uma ma-ra-vi-lha!”
(A menina sabe que idade tem?
Lembra-se?
Mesmo a sério?
Então porque não caminha sem saltar?
A Júlia da infância…)
Então desceu à memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho. Sonho com a praça e nesse sonho mora a menina triste que um dia fui. Com um cesto das compras pendurado do braço direito e a Júlia do lado esquerdo. Porque lhe chegavam essas memórias e porque lhe chegariam sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?
Agora é o ano de 2031. Já fiz oitenta e três anos. A praça tão diferente da praça da infância. Onde está a praça, onde a infância? Aqui, junto de mim, dentro de mim. Na minha memória, no lugar que eu sou e no espaço que desenho à minha volta.
Luís Pacheco desce a praça, sozinho. É domingo (ou dia feriado, talvez) e ele avança sobre o tabuleiro de calçada portuguesa, em seus efeitos de preto e branco. De preto e branco também a sua alma. Nada de auto-complacências, pensa. Vê a Banda de Comércio e Indústria a subir em direcção à praça, o momento era solene a avaliar pelo ar dos executantes. Luís Pacheco imita-os, toca um bombo imaginário enquanto desce a praça em direcção à banda. Os gestos de quem toca bombo sem tocar desenham espirais no ar à sua volta e acentuam o ar de clown vestido a preceito. O momento do encontro entre o executante imaginário e a banda aproxima-se perigosamente. Quando se dá são os membros da banda que recuam e se afastam. Luís Pacheco passa triunfante pelo meio de todos que se espalham um pouco por todo o lado em seu redor. Uma vitória! Já sem filas, já sem a ordem inicial, a banda toca, toca…. Eis um momento de revolução, de rebeldia, de desestabilização da ordem estabelecida. Luís Pacheco tinha o dia ganho.
(e eu, no presente:
Que faço aqui? Que faço?
Onde a praça? Como ouvi-la?
Como vê-la? Não pisar… não pisar…)
Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amámos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção.
Quem sabe sequer o que pensa, ou o que deseja? Quem sabe o que é para si mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos, e não foram nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.
E se tivermos os olhos abertos até ao fim vemos o quê?
A vida em si, cada momento da vida, cada gota sua, aqui, neste instante, agora, ao sol, era suficiente. Demasiado até.

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Por: Isabel Xavier

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