A Pinóquia

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1727

Uma árvore muito antiga, um pinheiro manso, estava atacada por uma doença. As folhas começaram a amarelecer, depois foram caindo. Um triste tapete de caruma murcha e escorregadia ficou no chão, escondendo as raízes. Os ramos mais finos lá do alto do cocuruto estalavam e partiam. O abandono invadia o antigo jardim,onde o pinheiro tinha crescido.
A bonita casa que ornamentava este jardim era cor de rosa, mas portas e janelas pendiam de tristeza. Os ferrolhos enferrujados, deixavam abanar as madeiras desconjuntadas. O azulejo com o nome da casa, embora muito estalado, ainda permitia ler “Vivenda Toscana”.
Tinham ficado como habitantes a Sardanisca Tisca, o casal de ratinhos os Acácios, pais de muitos Acacinhos, a fuinha Farinha, mãe das Farinhitas. No beiral do telhado estavam alojados os pardais.
Depois de uma violenta tempestade se ter abatido sobre aquele lugar, um grosso ramo já anteriormente lascado, partiu-se e, com enorme fragor, caiu. Ficou no chão, refastelado.
O ruído ouviu-se na aldeia próxima. A aldeia A-dos- Felizes, onde morava o carpinteiro João, de sua alcunha o Japeto. Porquê esta alcunha? Porque o bisavô deste carpinteiro, nascido e criado na mesma terra, num certo dia da sua infância,depois de ralhar-lhe a mãe porque estava a ser mentiroso, respondeu com muita graça à pergunta do pai que perguntara se o carvão da lareira estava apagado ou aceso.
– Japeto! – queria o menino dizer “já está preto”!
Voltando aos tempos de hoje, o carpinteiro Japeto ouviu o estrondoso ruído do ramo a quebrar e depois a cair. Pensou que era uma oportunidade de ir buscar madeira que o abandono da casa fazia ser propriedade do primeiro que lá chegasse. Agarrou na caixa das ferramentas e dirigiu-se para os restos do portão que dava acesso ao jardim da vivenda.
Olhou o gigantesco pinheiro manso, que tão solitário estava e lembrou-se,desolado, dos tempos idos em que o jardim era uma roda viva de crianças brincando. O próprio Japeto estava a envelhecer, mas tinha uma grande família. Por isso, ainda mais sentia a tristeza da árvore que, sozinha, assim baixava os braços quebrados pelo vento, pelas chuvas e pelas saudades.
Agarrou no madeiro caído e carregou-o no carrinho de mão que tinha trazido consigo. Era muito pesado, mas o velho carpinteiro já tinha lidado com muitos outros pesos e sabia por onde lhes pegar, para facilitar o trabalho de os erguer.
Carregou a tronco para casa. Pelo caminho, vários vizinhos vieram espreitar, e alguns morderam na conversa:
-Então Japeto, vais fazer um novo banco para a tua oficina?
– Japeto, conta-nos, qual a tua nova obra? Vais transformar esse ramo grosso em tábuas para uma escada de caracol? Será para subires ao sótão da tua casa? Com o óculo que lá tens podes contar as estrelas!
Mestre Japeto não respondia. Na sua imaginação já volteavam formas e feitios. Preparava-se para limpar o tronco, apará-lo e depois de limpo, se sentaria com todo o vagar a pensar que forma lhe daria. Para a lareira não o deixava ir. Respeito lhe merecia o velho pinheiro que aquele braço criara, num lento crescimento, ora inverno, ora verão, e tão bem o alimentara com a seiva que lhe vinha das raízes. Meteu o pesado madeiro em cima da mesa da oficina e foi jantar a casa.
Toda a refeição esteve distraído. Nem as histórias que a neta Inês contou sobre a escola lhe conseguiram cativar a atenção. Sentia-se cansado. Decidiu deitar-se cedo, logo depois de ter ajudado a levantar a mesa. Pediu à Avó Teresa que o desculpasse de não limpar a louça, mas todo o corpo lhe pedia a cama, os lençóis de linho e os cobertores de lã. Até botija de água quente preparou para aquecer os pés. Adormeceu num pronto. E logo os sonhos vieram. Uma engraçada boneca tomou forma, com uma cabeça redonda, cabelos aos caracóis feito de barbas de milho, braços e pernas finos, o corpo franzino como o de uma bailarina. A boneca lembrava-lhe uma história tão bonita que a Mãe lhe contava para dormir. A história da Pinóquia, uma menina que recusava dizer mentiras. O tronco havia de ganhar forma. Seria prenda para o aniversário da Inês, que, da bisavó, herdara o nome. E o feitio.

Beatriz Lamas Oliveira
blamas599@gmail.com

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