A mulher rural: da complementaridade à desigualdade

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Saikiran Datta
investigador

Atualmente, a sociedade reclama a igualdade de género e de oportunidades. Porém, a dinâmica no contexto rural de outrora era diferente. O papel da mulher tem sofrido alterações com as mudanças sociais. Ela era parte integrante do mundo rural. Quando o homem abandonou o campo e emigrouem busca de um trabalho melhor, a mulher rural chegou a substituí-lo como jornaleira. Para além do trabalho agrícola, ela executava ainda todas as tarefas domésticas e sustentava a vida familiar. Contudo, a partir dos meados de 1970, ela acabaria por abraçar a rotina da vida urbana. O emprego na cidade criou uma ruptura com as práticas do passado, levando a camponesa a executar trabalho nas fábricas de cerâmica e de empalhação, onde uma empalhadeira ganharia 1$00 por garrafão. A desigualdade no contexto urbano acompanhou outras alterações que romperam com as tradições.
A camponesa deixaria de ser uma mulher fechada no contexto restrito do campo e do lar e dedicar-se-ia à vida profissional na cidade. Enquanto que, no campo, a jorna era considerada uma ajuda essencial para a economia doméstica, por si estagnada, o salário citadino, embora remunerado, era competitivo, subordinado e conformado. Melhor acesso a oportunidades e recursos, que contribuíram para a sua autonomia, acompanhou a sujeição a condições de trabalho muitas vezes desiguais. A sociedade portuguesa teve na figura da mulher rural uma força fundamental que mantinha coesa a família e a comunidade, sendo ela o pilar da vida doméstica, protetora do lar e dos valores morais. Rumo à cidade, ela lutou pela igualdade numa outra dimensão em que a mesma sociedade inferiorizou o seu trabalho em relação ao do sexo oposto. Os dados regionais referentes a 2019 corroboram ainda essa disparidade em que a sua remuneração média fica desvalorizada em menos 137,4€ mensais quando comparado com a masculina – de 912€ para 774,6€.
A pobre ceifeira que cantava em alegre inconsciência desapareceria do cenário rural com a chegada das máquinas debulhadoras e com a morte da cultura do trigo. Frequentar lavadouros, rios de mulheres e fontes cairia em desuso. Os produtos rurais (queijo, enchidos, doçaria e pão), apreciados no contexto citadino, são essências do campo que a mulher rural aperfeiçoaria. A janela da sua vida, como que pintada pelo artista holandês Vermeer, teria uma aurea mediocritas, uma interioridade espiritual e de contentamento. Nesta lógica, falar de desigualdade seria subestimar a preciosidade da nossa camponesa.
O estatuto ascensional da mulher rural mede-se pelas funções coletivas por ela desempenhadas num contexto tradicional, sem ela ser desigual ou inferior ao homem e longe de ser alienada em hábitos individuais que fomentam outros valores e afirmações e outras vivências. No caminho do campo à cidade opera-se a transição ao estado de desigualdade, do simples inocente ao complexo conflituoso.

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