«A Companhia dos corvos» de Joaquim do Nascimento

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Depois das memórias da aldeia de Pereiros («Quotidianos de uma aldeia do Alto Douro» e «A casa e as sombras») e da revisitação ao inquérito do Ministro do Reino em 1758, Joaquim do Nascimento escreve a memória de um tempo (1963-1966) entre dois lugares – Lisboa e Inhaminga «uma vila de ferroviários localizada a cerca de 200 quilómetros da cidade da Beira na linha que, do seu porto, levava à Niassalândia».  Partiram de Lisboa no Niassa: «Para Angola rapidamente e em força disse o cabrão do chefe, mas não criou condições para navegar, o filho da puta, com perdão da mãezinha dele!». Iam no Niassa «rapazes tontos, é verdade, mas foi sobre os nosso ombros que os bonzos do regime depositaram a responsabilidade de lhes guardar o Império e nós, convencidos, inchávamos o peito e fingíamos que acreditávamos».
Escrita em 2008, esta viagem ao passado não se escreve contra ninguém, limita-se a ser «uma mistura de imagens e de sentimentos que vêm à cabeça como acontece quando desfolhamos velhos álbuns de fotografias». Mas não esquece o amor das mulheres («trarão nos corpos um perfume forte a feno molhado e a flores de acácia e vão trocar connosco a alegria intensa de quem se quis, só por se querer, pois elas sabem e nós sabemos que o tempo urge e o dia seguinte pode ser o último«) nem a morte dos rapazes: «O camarada que decidiu acabar com a vida ficou sepultado em Inhaminga e ainda hoje me pergunto que razões o terão levado a suicidar-se assim na força da vida». De um lado o medo («Eu senti a cor do medo algumas vezes») do outra lado os aerogramas: «a comida podia inventar-se, podia esquecer-se, as palavras não, dos pais, das noivas, das namoradas, das madrinhas de guerra, dos amigos, da família, as palavras por nada deste mundo podiam ser substituídas ou adiadas, eram elas que nos ligavam aos afectos e ao mundo.» De um lado as rações de combate («o crânio que as inventou devia comer rações de combate durante toda a vida») do outro lado os corvos que dão título ao livro: «E não é que o sacana do corvo, com umas pedras de sal por cima, um pouco de piripiri, umas gotas de azeite, assado no ponto certo, me soube melhor que o arroz de cavala, sempre arroz de cavala que há muitos dias se comia no acampamento?»
(Editora Padrões Culturais, Capa: Stekloduv Fotolia, Paginação: Mário Andrade)

José do Carmo Francisco

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