Existem actualmente dez mulheres a secar peixe no areal da Nazaré. A família Fialho faz parte deste leque de resistentes, mas ambiciona mais do que deixar o carapau ao sol.
Há três anos, a mãe Isaura e os filhos Samuel e Inês criaram a marca Maria da Nazaré: um projecto que adoptou o nome da avó, de 93 anos, e que quer relançar a tradição da secagem do peixe. Juntos idealizaram uma embalagem própria, em forma de cartucho, e levaram o seu carapau seco às ementas de restaurantes. O próximo objectivo é obter um certificado de higienização desta prática.
É no Mercado Municipal da Nazaré que Isaura Fialho, 58 anos, arranja os carapaus e os batuques (verdinhos) para depois serem estendidos ao sol. O processo exige técnica e um par de mãos bem treinado. Primeiro tira-se a tripa, depois abre-se o peixe. Há que ter cuidado com a espinha dorsal, cortante como uma lâmina. A água, sempre a correr, garante uma limpeza mais eficaz, sem pinga de sangue. É que se o peixe não for fresco e estiver bem limpo, corre-se o risco de atrair moscas. Após passar por três salmouras (cuja quantidade de sal vai diminuindo), o pescado está pronto a ser estendido nos paneiros. Com umas galochas cor-de-rosa, Isaura pega no balde e desloca-se do mercado até à praia, transportando o peixe num carrinho de mão. Já no areal, a peixeira coloca um a um todos os batuques nos “estendais” que levam até 90 unidades. Os seus paneiros são os verdes e ainda têm a assinatura da mãe a vermelho. Cada uma das senhoras tem uma cor que identifica as suas tábuas de rede. “Esta foi uma semana complicada, com um tempo muito incerto. Por isso tenho que aproveitar todas as horas de sol para conseguir secar algum peixe”, diz a nazarena, queixando-se dos “marginais” que recentemente lhe rasgaram as redes. Depois de três dias ao Sol os batuques estão secos. Ou então enjoados (mais moles), se apanhados em menos de 24 horas. Enquanto Isaura Fialho trabalha na praia, a filha Inês permanece no mercado, responsável pela venda do peixe seco. Na bancada, além do carapau e do batuque, tem em exposição fotografias da avó Maria da Nazaré e uma cópia de reportagem do Público sobre esta típica iguaria. Há ainda uma zona de degustação, onde os clientes podem provar o peixe numa tosta com tomate, temperada com azeite e alho. Em pequena, Inês já pedia à mãe para amanhar carapaus quando estava ansiosa com algum problema. O exercício funcionava como uma espécie de terapia, diz ela.
Aos 36 anos, depois de se ter licenciado em Educação de Infância e de ter exercido na área, preferiu dedicar-se ao negócio da família. “A verdade é que estou aqui porque gosto e não por obrigação”, contou. Quando a avó soube desta decisão tentou dissuadi-la, disse-lhe que o peixe lhe estragaria as unhas e que o lugar de uma senhora com um curso superior não era no mercado. Agora, o discurso de Maria Nazaré é outro: “já tive propostas na minha área e ela aconselha-me a não aceitar, que não há melhor do que sermos patroas de nós mesmas”. Também o irmão, Samuel (30 anos) trocou o jornalismo pelo peixe seco. Encarrega-se do marketing e da estratégia de comunicação da empresa, criada há três anos. Quando aconselhou a mãe e a irmã que as reuniões deveriam ser feitas fora de casa, estas não entenderam. “Agora compreendo que é importante para nos concentrarmos apenas no negócio, levarmos a coisa a sério”, explica Inês. Também foi o rapaz da família quem inventou o cartucho, uma embalagem triangular azul, idealizada para responder ao turista.
É que no seu verso – em português, inglês e francês – conta-se em resumo a história da secagem do peixe. “Muitas vezes os estrangeiros não conhecem o produto e por isso não compram à dúzia. Com o cartucho levam apenas um ou dois para provar e ainda ficam a conhecer as origens”, adianta Inês, salientando que metade dos compradores são turistas (especialmente franceses). Graças ao fenómeno das ondas gigantes, a Nazaré passou a ser um destino de férias em pleno Inverno, o que veio elevar para mais do triplo o número de clientes estrangeiros da Maria da Nazaré.
DE ALIMENTO DE SUBSISTÊNCIA A IGUARIA GOURMET
Não se sabe ao certo em que ano se iniciou esta prática, mas já a bisavó de Inês lhe conhecia o jeito. O que actualmente é uma tradição secular, nasceu pela necessidade de conservar o peixe e garantir alimento durante o Inverno, nos dias em que os pescadores não se podiam fazer ao mar. Um carapau seco, por exemplo, tem validade de cerca de um ano. Maria da Nazaré, 93 anos, viu-se obrigada a abandonar a escola para trabalhar no peixe. Tinha apenas seis anos e uma vontade imensa de aprender, mas foi traída pelas dificuldades económicas de uma família de 12 irmãos. Voltou à escola com 65 anos, para concretizar o sonho de saber ler. Num agradecimento à avó, os irmãos fizeram do seu nome a designação da marca: “ela queria que escrevêssemos um livro sobre ela porque é uma mulher de muitas histórias, mas resolvemos homenageá-la desta forma”, diz a neta, recordando o dia em que a avó foi presa nas Caldas por ter sido apanhada a vender fora da praça. Embora já esteja reformada, Maria da Nazaré faz questão de inspecionar o peixe seco. Prova-o, cheira-o, toca-o. “Queremos dar a Nazaré a conhecer através desta iguaria e mostrar às pessoas a variedade de pratos em que pode ser utilizada”, explica Inês Fialho, que já saboreou o carapau seco cru e cozido (como é habitual), mas também em patés, pataniscas, massas, folhados, pizzas, risotos e até num gelado. “E achei sempre muito saboroso!”. A marca Maria da Nazaré diz querer aproveitar a alavanca da cozinha gourmet para apresentar diferentes interpretações do peixe seco à mesa das pessoas.
Actualmente, a empresa tem o seu produto representado em dois restaurantes nazarenos: a Taberna do 8 ó 80 e a Taberna d’Adélia. “Só não estamos presentes em mais porque ainda nos falta um certificado de higienização. Estamos a trabalhar para obtê-lo, inclusive junto da Escola Superior de Peniche, que está a investigar para desenvolver um manual de boas práticas”. Infelizmente, o diálogo com as outras peixeiras às vezes não é fácil: as mais novas têm 50 e muitos, a mais velha 83, e nem sempre se disponibilizam a aceitar regras e mudanças. Para manter viva a tradição, Inês Fialho assegura que é necessário cativar gente jovem que veja potencial neste negócio. Outra aposta da empresa tem sido marcar presença em eventos nacionais, como o Peixe em
Lisboa ou o Volvo Ocean Race. Oportunidades que surgem através de convite e são excelentes para fazer publicidade. Inês e Isaura só dispensam levar a saia rodada, imagem típica da Nazaré: “é pesada e pouco prática para trabalhar”, conta a mãe.
TONELADAS DE PEIXE SECO
Embora sequem peixe desde 1928 (pelas mãos da avó), a família Fialho nunca se preocupou em registar a quantidade de produto produzido nem em apontar os lucros. Esse trabalho de gestão começou agora a ser realizado pelos irmãos Inês e Samuel, que esperam para o ano apresentar dados concretos. Apesar de decorrer em terra, esta actividade está muito dependente das condições meteorológicas: só se pode secar peixe se houver Sol. No pico do Verão chegam a estar no areal 100 quilos por dia, o que pode dar quase 3 toneladas de peixe seco por mês. Mas no Inverno a produção (e também a procura) é mais baixa. Segundo Inês Fialho, a margem de lucro é razoável: cada unidade é vendida a um preço que é 1,5 vezes superior ao seu custo. Em média, uma dúzia de carapaus secos é comercializada a seis euros. “O preço traduz o trabalho e o risco que este produto exige. Cada peixe é arranjado um a um, implica muita mão humana e estamos constantemente dependentes das condições meteorológicas para trabalhar”, explica Inês, salientando que as novas tecnologias são uma ferramenta importante para prever o tempo, mas também se enganam.































