Como a aguardente mais preciosa, que exige o passar dos anos para se destacar, a Adega Cooperativa da Lourinhã passou por uma fase conturbada, mas deu a volta por cima. Hoje vive um momento positivo que lhe permite olhar e pensar o futuro com relativa tranquilidade. Fomos à descoberta deste segredo envelhecido, que coloca a região no mapa internacional das aguardentes de denominação de origem controlada
A pouca iluminação dos corredores e as paredes escuras da Adega Cooperativa da Lourinhã – com os fungos da evaporação do álcool e as teias de aranha que ali são deixadas -, escondem um produto valioso. Dentro de dezenas de cascos de carvalho envelhece um produto único em Portugal e raro a nível europeu. São mais de 100 mil litros de aguardente que naqueles estreitos corredores envelhecem e adquirem as propriedades que só o tempo lhes pode conferir. Trata-se de um activo que no mercado pode valer mais de 2 milhões de euros.
Mas é preciso recuar cerca de dois séculos para perceber a história da aguardente da Lourinhã. É preciso chegar ao tempo em que os proprietários das adegas de vinho do Porto se deslocavam a esta localidade para adquirir aguardente vínica que era, depois, usada na produção do mais famoso vinho português.
Ainda em meados do século XX, os “senhores” do Douro vinham buscar a aguardente a mais de 30 destilarias da Lourinhã. “Por que é que os produtores do vinho do Porto vinham aqui buscar a aguardente e não a qualquer outro lado? Porque a nossa tinha características especiais”, explicando João Pedro Catela, o presidente da cooperativa desde 1996. “As castas que temos encontram-se noutros locais, mas há três factores diferenciadores: o clima, o solo e a proximidade ao mar, que lhes confere características especiais”, acrescenta.
Nessa época, a aguardente que era levada para o Norte não era este produto envelhecido em madeira, mas sim a aguardente vínica, transparente e com mais de 70 graus. Actualmente tal já não acontece, até porque se for vendida a granel a aguardente deixa de ser considerada Denominação de Origem Controlada (DOC).
Mas é dessa percepção de que o produto que dali saía tinha uma qualidade superior que surge a ideia de alguns produtores de fazer a região demarcada, num processo que culminou na Assembleia da República, em 1992.
Essa é também uma das grandes diferenças da aguardente da Lourinhã para o Cognac e o Armagnac, as duas outras aguardentes DOC que existem: a antiguidade que lhes conferiu a fama. João Pedro Catela demonstra, ainda assim, uma confiança cega no produto. “Tragam Armagnac e Cognac para uma prova cega, que não ficamos atrás”, assevera.
O que diferencia esta região demarcada das outras é que esta se dedica apenas à produção de aguardente. O facto de ser DOC implica que sejam plantadas determinadas castas, neste caso num território que abrange 13 freguesias, a maioria das quais na Lourinhã, mas também em Peniche (Atouguia da Baleia e Serra d’el Rei), Óbidos (Olho Marinho), Bombarral (e Vale Covo) e Torres Vedras (Campelos).
Além da origem das uvas, o facto de ser DOC significa também que todo o processo é feito na região. Noutros tempos, as instalações da Adega tinham o dobro do tamanho daquele que hoje vemos. No terreno adjacente existia a zona onde se recebiam e pesavam as uvas e onde era feita a vinificação e a destilação. Foi a delicada situação financeira que obrigou a estas mudanças, num processo conturbado. Quando o actual presidente tomou posse, havia um leilão marcado para vender as instalações e foram necessárias negociações com credores.
Mais recentemente, quando as instalações passaram para a propriedade da Estamo (uma sociedade financeira patrimonial do Estado), continuou a situação de incerteza, uma vez que o terreno onde funciona a adega podia ser vendido. O processo terminou com a autarquia a comprar o terreno, em 2019, e a arrendá-lo à Adega, onde trabalham quatro mulheres a tempo inteiro e o presidente da instituição, que se dedica exclusivamente a esta casa.
Hoje, sem um espaço próprio para vinificar as uvas e destilar o vinho, a cooperativa socorre-se dos seus parceiros. A vinificação é feita nas instalações de um dos cooperantes e a destilação ocorre na destilaria da centenária Quinta do Rol, a empresa privada que também produz este precioso líquido, num duopólio que se respeita para crescer.
Segue-se, então, o envelhecimento em cascos de carvalho nacional e francês e, posteriormente, a feitura dos lotes e o engarrafamento, que também têm que ser feitos dentro da região. E são! Mais propriamente, nas instalações da Cooperativa.
Nos corredores onde se valoriza a aguardente (em termos estéticos, gustativos e até financeiros), as portas só se abrem e as luzes só se acendem quando é necessário e há uma regra de ouro: ali não entram químicos. O chão só é lavado quando algo se entorna e apenas com água.
Depois dos lotes feitos e do engarrafamento, cada garrafa é lacrada e finalizada com as fitas para ser rotulada, num processo feito meticulosamente, à mão, uma garrafa de cada vez. Assim se valoriza este segredo envelhecido na Lourinhã.
Nova série lançada em breve
“Neste momento estamos a preparar um lote que será a 28ª série e que terá 8000 garrafas numeradas”, revelou à Gazeta João Pedro Catela, revelando que o precioso néctar deverá estar pronto dentro de um mês.
A aguardente é classificada de acordo com a sua idade. Na Cooperativa só se fazem as XO (Extra Old), que implica que envelheçam durante cinco ou mais anos. “Geralmente os lotes têm uma média de 12 anos de envelhecimento”, nota. Quer isto dizer que são uma mistura de aguardente com diferentes anos de envelhecimento. Na deste ano, por exemplo, a mais velha estagiou 22 anos em cascos de carvalho e a mais nova 6 anos.
As 8000 garrafas correspondem a 5600 litros de aguardente.
“Estamos num processo de conquistar mais mercado, como temos vindo a conseguir, sempre a crescer”. Para tal tem sido importante o aumento dos distribuidores.
Ainda assim, 2019 foi um ano de um aumento muito ligeiro, que se explica essencialmente por dois factores: a falta de poder de compra e “a quebra diabólica” nas vendas de aguardente e whisky velho na restauração, que, segundo João Pedro Catela, está muito ligada à proibição de fumar naqueles estabelecimentos.
Em 2006, a Adega começou a vender nas grandes superfícies, o que passou a permitir a presença em quase 400 lojas em todo o país. Esta distribuição representa 20% da facturação, mas o principal canal de distribuição é mesmo a venda directa a restaurantes e ao público (46%).
A Lourignac entrou no mercado canadiano em Maio com mais de uma centena de garrafas, mas a exportação tem um nível residual.
Com os custos de produção assegurados com as vendas, a Adega dá-se ao “luxo” de não vender a crédito e também não cede a exclusividade a ninguém. “Não temos empréstimos bancários, temos os impostos e os ordenados em dia e pagamos aos fornecedores a pronto pagamento”, faz notar o rosto da recuperação da Cooperativa.
Os seus 66 anos de vida (cheia de aventuras) deram-lhe a experiência e o conhecimento, mas não lhe retiraram a visão inovadora e estratégica. “A roupa passa de moda, os produtos alimentares têm uma validade, mas a aguardente não. Quanto mais velha, melhor fica”, lembra João Pedro Catela, que vive a vida da cooperativa como se da sua própria se tratasse.
De conversa fácil e gerador de empatia, é um livro aberto no que à cooperativa diz respeito. João Pedro Catela identifica um enorme potencial de crescimento até no mercado nacional. “Temos muito para crescer, até porque a maioria dos jovens não conhece a aguardente da Lourinhã”, aponta o presidente da cooperativa.
Visitas têm vindo a aumentar
Nesse sentido, o enoturismo ganha especial importância. As visitas guiadas, que incluem uma prova, têm vindo a ter cada vez mais procura. Custam 5 euros, mas incluem uma oferta de uma pequena garrafa com o mesmo custo.
No último ano passaram pela adega quase 1700 pessoas. “Temos vindo a receber mais pessoas a cada ano”, conta o dirigente, sublinhando que, em cinco anos, o número de visitas mais que duplicou.
Entre as visitas há algumas especiais, como um passeio de motociclistas que por ali passou, alunos das escolas, mas também um grupo de cidadãos invisuais que foi conhecer a adega.
Apesar do sucesso reconhecido a nível nacional e internacional, a cooperativa tem vindo a procurar inovar constantemente. Entre essas inovações está uma que tem recebido prémios a nível internacional. O gin Sharish Laurinius, que é feito no Alentejo, e que envelhece durante cinco meses em antigos cascos de aguardente da Lourinhã. Tal estágio dá ao gin uma cor âmbar e um gosto próprio.
O vaporizador também foi uma das novidades que obteve uma receptividade aceitável, pois permite pulverizar comida com aguardente.
A ligação à gastronomia começou com a produção de chocolates franceses com aguardente. Depois vieram os pastéis, que já se tornaram famosos, e de seguida a pêra rocha em aguardente.
Mais recentemente uma empresa de Óbidos que produz macarons também fez uma parceria e criou um produto inovador com aguardente.
Além disso, nos corredores da adega decorrem estudos constantes com a Estação Vitivinícola de Dois Portos nomeadamente nas áreas do envelhecimento da aguardente e dos efeitos dos diferentes tipos de madeira.
Entre outros eventos, a adega já recebeu noites de fados e até um encontro de spinning, com dezenas de bicicletas estáticas montadas.
“A Aguardente da Lourinhã não vai acabar!”
Apesar dos cerca de 200 sócios inscritos na cooperativa fundada em 1957, são apenas duas dezenas que entregam uvas. Mas, segundo João Pedro Catela isso não é sinal de falta de vitalidade, apenas um retrato dos tempos.
É que antigamente existia o pequeno produtor que tinha, por exemplo, meio hectare e que praticamente desapareceu, seguindo-se uma tendência de ampliação e surgimento de novos grandes produtores. “Este ano até tínhamos cooperantes que queriam entregar mais uvas”, disse. Isto explica-se, também, pelo facto de a cooperativa viver um bom momento. “Este ano estamos a pagar a 0,35 euros o quilo, independentemente do teor alcoólico e conseguimos pagar a quatro meses”, conclui.































