Vim de Leiria para as Caldas em 1959 e nunca mais de cá saí. Trabalhei aqui em cima na segunda janela junto ao mastro da bandeira e fui sempre um diligente funcionário camarário: dominei todas as tarefas administrativas, fiz fiscalizações e até era eu que fazia o exame aos munícipes para terem a carta de condução para bicicletas. Dei-me bem com os chefes e com os presidentes de Câmara, fui auxiliar de secretaria e zelador. Mas às cinco da tarde saía dos Paços do Concelho e ia ainda para o meu part-time favorito: vender bilhetes, gerir bilheteiras e entradas de espectáculos. No casino, nos cinemas, nos espectáculos. De tal forma que depois da reforma continuei a fazê-lo até há bem pouco tempo. 82 ANOS Nasci em Marrazes em 25 de Julho de 1933 e, se tudo correr bem, na próxima segunda-feira hei-de festejar os meus 83 anos com a família. Estudei em Leiria onde fiz a escola primária e depois o curso de Comércio. Depois, trabalhei em algumas casas comerciais da cidade até ter 20 anos e ser chamado para a tropa, que naquele tempo era obrigatória e a que muito poucos escapavam. O PRIMEIRO DIA Às nove da manhã do dia 4 de Junho de 1959 fui empossado funcionário camarário pelo presidente Fernando Pais de Almeida e Silva e pelo chefe de secretaria Manuel de Oliveira Pires. Tinha eu 26 anos e comecei aí a minha carreira na função pública que só terminaria com a reforma 30 de Abril de 1996. NA GAZETA EM PART-TIME Mas já que estou a falar para a Gazeta, tenho um episódio curioso para contar. Eu também fui – em parte – funcionário da Gazeta das Caldas porque, a dada altura, o Dr. Carlos Saudade e Silva, que era o director, e o senhor Domingos D’El Rio, que era chefe de redacção, convidaram-me para dar uma ajuda no jornal, que ficava ali na Rua Leão Azedo. Eu saía dos Paços do Concelho ao fim da tarde e ia para a Gazeta tratar do arquivo, rever textos e ajudar a pôr as cintas no jornal para distribuir aos assinantes. UMA SEGUNDA REFORMA No dia 30 de Abril de 1996 trabalhei pela última vez na Câmara. Mas depois não fiquei parado e até se pode dizer que comecei uma nova vida porque eu entretanto pertencia à delegação das Caldas da Direcção Geral dos Espectáculos e continuei ligado às bilheteiras. Cheguei a ir fazer os cinemas de Aveiro e da Nazaré. Também assegurava as da Praça de Touros das Caldas. E estive várias vezes em Cabo Verde para gerir os cinemas e as bilheteiras na ilha de Santiago, na cidade da Praia, na Assomada e no Tarrafal.
CASADO, 4 FILHAS, 6 NETOS
Mas tive a sorte de ficar em Leiria. Assentei praça no Regimento de Artilharia 4 em 1954 e passei à disponibilidade em 1955. Mas em 1956, já eu estava a trabalhar no Governo Civil, fui chamado para manobras e passei 31 dias em Santa Margarida. Eu já conhecia aquilo porque nos dois anos anteriores também já lá tinha estado. Não havia ainda a guerra colonial, mas passar um mês naquele deserto de Santa Margarida, onde se juntavam mais de 25.000 homens, tudo acampado e a apanhar dias de chuva, era duro.
Fui escriturário no Governo Civil de Leiria entre 1955 e 1959. Tratava do arquivo, de expediente, ia ao correio, enfim, tarefas administrativas. Mas nunca passei de assalariado. Aliás, naquele tempo já se falava que os governos civis iam acabar. Afinal ainda demorou 50 anos até serem extintos.
Foi o secretário do Governo Civil, o Dr. José Damasceno Campos, cuja filha, a Isabel Damasceno, viria a ser presidente da Câmara de Leiria (cheguei a andar com ela ao colo), que me aconselhou a procurar outro emprego porque eu ali não iria passar de assalariado. A dificuldade em entrar na função pública não é só de agora. Já era naquele tempo.
Havia uma vaga para auxiliar de secretaria na Câmara das Caldas e então lá me despedi da família e dos amigos (eu jogava futebol no Marrazes), meti-me no comboio e vim cá parar. Ainda me lembro que, em S. Martinho do Porto, entrou um senhor chamado Inácio Abegão, que tinha uma loja ali na Rua Alexandre Herculano (Rua do Jardim) que me disse: “você vai para uma bela terra”.
Eu até sorri porque já conhecia esta terra muito bem. Primeiro porque eu já cá tinha vindo muitas ver os jogos de futebol quando o Caldas jogava na I Divisão. E depois porque o meu irmão, Joaquim Carreira Alves, era cá agente da PSP. Aliás, foi para a casa dele, ali na Rua da Estação, que eu vim viver e era a minha cunhada que me tratava da roupa. Eu e o meu irmão éramos muito chegados. Mais do que irmãos, éramos amigos. Por isso foi um duro golpe quando ele morreu, faz agora um mês.
Costuma-se dizer que o único trabalho onde se começa por cima é a abrir buracos. Por isso, eu também comecei pelo trabalho mais simples. Fui para os arquivos com o António Barros e estive lá vários anos. Depois subi à secretaria e comecei a trabalhar na parte da fiscalização dos mercados e até cheguei a controlar a pesagem da carne no Matadouro Municipal (onde é hoje o Centro de Juventude). Também aconteceu eu substituir o fiel de armazém de material eléctrico e das águas dos Serviços Municipalizados.
Uma das tarefas que eu tinha, era a de fazer os exames para a licença de condução de velocípedes, que era um documento obrigatório naquele tempo para se poder andar de bicicleta. Eu próprio tive de o fazer e foi o António Tanganho que me examinou.
Nunca tirei a carta de condução. A bicicleta bastava-me. Vivi sempre no centro das Caldas.
Em 1962, três anos depois de chegar cá, casei-me com a Maria Gracília, que me deu as minhas quatro filhas. Foi um grande desgosto quando a perdi, em 1984. Mas acabei por refazer a minha vida e voltei a casar-me mais tarde com a Maria do Rosário Francisco, que era minha colega na Câmara.
Iniciei ali uma carreira paralela à de funcionário público que nunca mais parou porque desde então passei sempre a ter outras actividades depois da minha hora de serviço.
Pouco depois fui convidado pelo senhor César Lourenço (que era o vereador com o pelouro do Turismo e sócio do J. L. Barros) para trabalhar em part-time no Casino do Parque. Era preciso alguém para tomar conta das portas, isto é, fazer a distribuição dos bilhetes aos porteiros, tratar da contabilidade e do movimento das receitas.
O Casino começou por abrir só em Julho e Agosto, mas como a bilheteira foi um sucesso, a comissão administrativa que geria aquele espaço, que estava ligado ao hospital, decidiu prolongar a abertura por mais tempo. Aquilo era uma coisa chique. É uma pena ter acabado. Foram lá actuar grandes figuras como o Shegundo Galarza, a Amália Rodrigues, a Hermínia Silva, o Max, o Carlos do Carmo.
E era um sítio onde só se podia entrar de gravata. Nós até tínhamos uma gaveta com gravatas para emprestar a quem lá aparecia com o pescoço à mostra.
Depois do 25 de Abril o Casino passou a Casa da Cultura, mas eu continuei sempre ligado às bilheteiras e a colaborar com a malta que passou a tomar conta daquilo. Conheci lá gente do teatro como o José Eduardo, a Mila Ferreira, a Adelaide Ferreira, o Manuel Silva Pereira e outros.
Com a experiência que eu tinha de gerir bilheteiras, fui convidado para ir para o Estúdio Um. Hoje os mais novos não sabem que ali ao pé do Hotel Malhoa (agora Hotel Cristal) havia um cinema que na altura fez furor, que era o Estúdio Um. Aquilo tinha uma data de sócios, mas foi um deles, o senhor Artur Capristano, que me levou para lá para trabalhar nas bilheteiras e fazer alguma programação.
Depois trabalhei também nos cinemas Delta, na Rua das Montras e acabei por me “especializar” nas bilheteiras dos espectáculos. Estive até no CNEMA (Centro Nacional de Exposições e Mercados Agrícolas) de Santarém.
Nas Caldas, nos gloriosos anos oitenta, quando as feiras da Fruta e da Cerâmica se realizavam no Parque, eu era também responsável pela coordenação das bilheteiras, mas aí também na função de empregado do município.
Li agora na Gazeta que a Feira da Fruta vai voltar ao Parque e fiquei muito contente.
Durante os 30 anos em que trabalhei na Câmara das Caldas, conheci vários presidentes: Fernando Pais de Almeida e Silva, Botelho Moniz, Paiva e Sousa (antes e depois do 25 de Abril), Artur Capristano, Manuel Perpétua, Hergildo Velhinho, Lalanda Ribeiro, Major Monroy e Fernando Costa. Nunca tive problemas com nenhum e dei-me sempre bem com todos, mas o que eu mais gostei foi do Eng. Paiva e Sousa. Acho que foi dos que fez mais pela terra.
Em 1992 foram inaugurados os novos Paços do Concelho, no Largo 25 de Abril, e os funcionários camarários foram todos transferidos para o novo edifício. Mas eu só lá trabalhei quatro anos porque me reformei logo a seguir. Lembro-me que o arquivo morto ficou nos antigos Paços do Concelho e que quando era preciso lá ir, os colegas convidavam-me para os acompanhar. Por uma questão de deferência e de respeito, porque afinal eu comecei a trabalhar precisamente no arquivo em 1959.
Quando mais tarde deixei esta actividade foi como se me tivesse reformado pela segunda vez. Desde então passo o meu tempo algumas vezes com os netos e aqui por casa quase o dia todo a ver televisão. Também tenho passado umas temporadas na Suíça onde vive a filha da minha mulher.
Mas quando vou à Praça da Fruta e olho para este edifício, sinto uma saudade do tempo em que eu era novo e trabalhava aqui, ali naquela janela. E até aos domingos e feriados eu vinha cá porque era eu que estava incumbido de dar corda ao relógio e de içar a bandeira portuguesa e a do município.
CARREIRA ALVES – na Câmara de dia e nas bilheteiras à noite
Vim de Leiria para as Caldas em 1959 e nunca mais de cá saí. Trabalhei aqui em cima na segunda janela junto ao mastro da bandeira e fui sempre um diligente funcionário camarário: dominei todas as tarefas administrativas, fiz fiscalizações e até era eu que fazia o exame aos munícipes para terem a carta de condução para bicicletas. Dei-me bem com os chefes e com os presidentes de Câmara, fui auxiliar de secretaria e zelador. Mas às cinco da tarde saía dos Paços do Concelho e ia ainda para o meu part-time favorito: vender bilhetes, gerir bilheteiras e entradas de espectáculos. No casino, nos cinemas, nos espectáculos. De tal forma que depois da reforma continuei a fazê-lo até há bem pouco tempo.




































