A Ira dos Deuses

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    Gazeta das Caldas
    Carlos Querido

    […] ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas […].

    Giovanni Boccaccio, Decameron

     

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    Em Decameron, Boccaccio descreve os efeitos nefastos daquela que terá sido a maior pandemia da história, a Peste Negra, que no ano de 1348, em Florença, matou mais de metade dos habitantes.
    Apesar de precursor do humanismo, com Petrarca, de quem era amigo, o poeta olha para o Céu em busca de uma explicação que poderá residir na vontade de Deus, ou no alinhamento dos astros, relacionando-a com os pecados dos homens: «A crueldade do céu, e talvez a dos homens foi tão rigorosa que a Epidemia grassou de Março a Julho com tanta violência […] que se calcula com segurança em mais de cem mil o número de homens que perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença».
    Sendo o homem o maior inimigo de si próprio, os massacres em guerras e genocídios nunca lhe suscitaram a mesma angústia que as epidemias, perante as quais a humanidade sempre se questionou sobre os desígnios dos astros ou dos deuses.
    O mesmo aconteceu noutras calamidades naturais, como o terramoto de 1755, na época atribuído à ira de Deus como castigo pelos pecados dos portugueses, o que indignou Voltaire, que amargamente deixou de acreditar que vivia num mundo regido pela ordem e pela harmonia, na bondade e misericórdia de Deus, questionando-se num célebre poema: «[…] Que crime, que falta comentaram estes infantes/ Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?/ Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios/ Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias?/ Lisboa está arruinada e dança-se em Paris […]».
    O terror da epidemia residia, sobretudo, na sua invisibilidade. Encerrado nas poderosas muralhas dos castelos que erguia sobre montes inexpugnáveis, protegido por fossos e pontes levadiças, o homem medieval preferia enfrentar inimigos de carne e osso, com arcos e flechas, lanças e espadas, ao invés deste inimigo traiçoeiro e silencioso, obra do demónio ou castigo de Deus, que recaía sobre pecadores e inocentes, contra o qual apenas lhe restavam as orações e o arrependimento pelos pecados cometidos.
    Somos herdeiros da nossa História, dos seus mitos, lendas e medos, até porque, como dizia Pascal, a propósito da Cultura, que implica a continuidade de um esforço espiritual que se supera aprofundando-se: «A sucessão dos homens no curso de tantos séculos deve ser considerada como um mesmo homem que subsiste sempre e aprende continuamente».
    O mesmo medo, atenuado pela informação que circula de forma diferente, e por condições de segurança que, apesar de tudo, a evolução científica nos confere, está presente hoje, quando saímos à rua e nos cruzamos no supermercado com alguém que, nunca se sabe, poderá trazer consigo o inimigo, adormecido, ou à espreita da primeira oportunidade para nos contaminar. Por isso nos afastamos, contornamos, evitamos toda a proximidade que possa ser o princípio dum fim doloroso. Até prova em contrário, todos podem ser inimigos.
    E que dizer do sentimento de culpa, quase clandestinidade, quando percorremos uma rua deserta, preocupados com o juízo de transgressão que os outros possam fazer da nossa presença naquele local, incómoda, ameaçadora.
    Sendo esta a última reflexão sobre este tema que partilho com os leitores da Gazeta, haverá que corrigir a ideia parcialmente incorreta que transparece na última crónica, sobre a igualdade e a horizontalidade da contaminação pelo vírus.
    Não se duvida que a contaminação ocorre independentemente do escalão social, como se confirma com a infeção do príncipe Carlos, ou do primeiro ministro do Reino Unido. Mas o acompanhamento na doença e os seus efeitos letais variam, infelizmente, em função de fatores sociais.
    Numa entrevista recente concedida ao seu biógrafo, o Papa Francisco chama a atenção para a imagem que correu mundo dos sem-abrigo colocados num parque de estacionamento ao ar livre na cidade de Las Vegas, com tantos hotéis sem ocupação ali tão perto.
    Por outro lado, refere a comunicação social que na área metropolitana de Milwaukee, no estado do Wisconsin, das mortes recentemente registadas, 72% eram de cidadão

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