São Petersburgo, o mundo

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José Ricardo Nunes

Nunca o mundo me pareceu tão infinito, o livro do Cesário mesmo à mão, como no poema, de frente um sol que não deixava ver nada. Um consumado demolidor de fronteiras, o sol. Depois só poderia mesmo ser o mundo, o mundo sempre depois de São Petersburgo, trepidante, mas com dúvidas legítimas quanto à via-férrea. Ainda ontem discutíamos o assunto: em que década assassinaram o comboio?
Outros ensinam que o mundo se esconde atrás de uma persiana. Descemos e subimos consoante as inclinações, as sublimações, as momentâneas disposições. Mas com experiência torna-se indiferente: o mundo aparece em todo o lado. Perícia e um pouco do talento inato que faz de nós seres volúveis e pouco confiáveis, estátuas que recusaram o molde e compreendem, aterradas, que jamais lhes será permitido saber que mãos pegaram no cinzel.
Dantes precisávamos muito mais do mundo. Hoje em dia talvez o mundo não passe de uma longa sucessão de imagens. Levantamo-nos à pressa e colamos os fragmentos. Andamos todos a fingir. Surpreendemo-nos, fingimos que nos surpreendemos. Esta banalidade à mesa de um café.
O mundo, pois, escrevia eu em estado de necessidade. A memória certificava-se da sua própria existência e dava as mais modernas garantias bancárias. O torvelinho, a voragem, o comboio parte à tabela em qualquer época e larga um rolo de fumo, o fumo não nos deixa ver o mundo que se adivinha mais à frente, vamos e ficamos com os que se vão e com os que ficam, minutos depois o fumo dissipa-se, somos o rosto de quem se despediu, enojados com a mão suada que apertámos, não há ninguém nem mundo que nos valha. Em Santa Apolónia ou noutra anacrónica estação, tanto faz.
Pensava que seria até à morte, mas um pouco mais adiante uma voz interrompia-me, uma voz, o corpo a crescer, o meu pai a explicar-me o sentido frio e vulnerável da responsabilidade. Olhos turvos de culpa. E prosseguia. Madrid, Paris, Berlim, por esta ordem ou seguindo outro itinerário, São Petersburgo imperiosamente antes do mundo.


Chefchaouen

Quanto ao ponto mais alto
da nossa passagem por Chefchaouen,
deve ter sido, de facto, o ponto mais alto
de Chefchaouen, subida a torre,
abeirando-nos do varandim
no preciso momento em que o altifalante
começou a difundir a chamada
para a oração, logo seguida por outras vozes
que se misturaram até tudo ser
antecipação ou ressonância,
como acontecia com o som dos bólides
nas transmissões televisivas da Fórmula 1.

| Margarida Araújo

Abandonei os sapatos no hotel
e fingi caminhar descalço,
sem necessidade de chão,
mas esses passos não me livraram
daquela dor alimentada por espigões
nas plantas dos pés e calos
desfeitos à unha.

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Pareciam-se, as ruas estreitas,
com os canais por onde circulam
no cérebro desordenadamente
factos de primeira grandeza
e ocorrências insignificantes,
guardadas sem motivo.
Carros e memórias desaguavam
naquela praça que era,
ao mesmo tempo,
muita gente junta e cada pessoa
com a história da sua corrida para Deus.
E ainda espreitei para dentro
de um homem, ainda tentei ver
em carne e osso como se apronta
um gesto, uma palavra
se desencadeia.

José Ricardo Nunes

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