• CASADO
• 77 ANOS
• UMA FILHA E TRÊS NETOS
O facto de eu ter sido prisioneiro ajudou-me a encarar a vida de guarda prisional de outra maneira.
Porque conheci os dois lados da mesma moeda. Sim, estive preso durante cinco meses na Índia aquando da invasão e ocupação pelo Estado Indiano daquela província ultramarina e por pouco não me vi diante de um pelotão de fuzilamento. Foram os piores tempos da minha vida. Nessa altura, eu não imaginava que viria a ser guarda prisional. Mas essa experiência deu-me uma melhor compreensão para com os reclusos com os quais acho que fui sempre justo e humano. Vim ao mundo no Casal Belver em 25 de Janeiro de 1939. Nasci em casa, como era habitual nesse tempo, em que só os mais ricos nasciam nas clínicas privadas (nas Caldas era no Montepio). Éramos nove irmãos: sete rapazes e duas raparigas. Havia de tudo menos abundância. Por isso comecei a trabalhar cedo. Andei na escola primária ao pé da polícia de trânsito e depois ia guardar gado. Levava as cabras por esses campos fora, do Imaginário à Ribeira dos Amiais, à Fanadia. Quando fiz a 4ª classe, e fazendo jus ao facto de ser caldense, fui aprender a moldar o barro. Trabalhei como aprendiz numa olaria que havia na Rua Henrique Sales que pertencia ao Inácio Perdigão. Aprendi a fazer manilhas, pias, cifões, tudo o que era canalizações e que se faziam em cerâmica. Aquilo depois, anos mais tarde, estalava tudo dentro das paredes das casas, mas não havia ainda os materiais modernos que há hoje para a construção. Quem amassa o barro também amassa o pão. Com 15 anos fui aprender a ser padeiro. Trabalhava na olaria durante o dia e à noite na padaria do Quaresma que havia na Rua Dr. Júlio Lopes. Ali, como era aprendiz, trabalhava à borla. Saía de madrugada e praticamente não dormia.
Na altura do 15 de Agosto, como havia muito trabalho (vinham milhares de pessoas às Caldas), pediram-me para ficar a trabalhar pela manhã fora e o patrão deu-me 50 escudos (0,25 euros). Quando eu me apanhei com 50 paus nas mãos eu nem me conhecia! Fui para a feira e aquilo era só andar nos carrosséis e nos carrinhos de choque. Com 16 anos fui para a padaria do César Gomes, que ficava em frente onde é hoje a Escola D. João II. Entretanto largara a olaria e agora já era padeiro profissional. Fiquei lá até ser chamado para a tropa. Assentei praça no RI5 nas Caldas em Outubro de 1960 e em Março de 1961 fui para a Índia, para Velha Goa. Quis o destino que eu assistisse – da pior maneira – ao início da queda do Império. Fiz parte do último contingente militar na Índia e apanhei a invasão. Fomos bombardeados, vi um alferes ao meu lado ficar sem a cabeça e eu próprio fui ferido e ainda tenho estilhaços no corpo. Três mil portugueses nada podiam fazer contra 40 mil homens da União Indiana. O general Vassalo e Silva deu ordens para nos rendermos. Nunca mais me esqueço: foi no dia 18 de Dezembro de 1961. Fomos para o campo de reclusão de Alparqueiros, um antigo quartel na cidade de Vasco da Gama. Eu pesava 80 quilos e em cinco meses fiquei com 47. O que custava mais era passar sede. À fome o corpo ainda se habitua, mas agora a sede é que era difícil de suportar. Um dia houve uns oficiais que fugiram e os indianos, para nos castigarem, mandaram-nos formar para sermos fuzilados. Pensei que ia acabar ali, mas depois o capelão acho que falou com eles e acabaram por não matar ninguém. Fomos libertados num dia cheio de significado: 13 de Maio. Meteram-nos num avião para Karachi e depois no paquete Moçambique para Lisboa. Diga-se que a viagem de regresso foi bem melhor porque até comíamos à mesa. À ida para lá, no Niassa, os soldados comiam todos amontoados no convés.
Fomos enviados para Portugal e cheguei cá a 30 de Maio de 1962. O Salazar nunca perdoou ao general Vassalo e Silva que se tivesse rendido. Preferia que tivéssemos morrido todos a defender uma terra que não era nossa. Inutilmente. Como eu tinha estado preso, já não acabei a tropa. Deram-me licença e retomei a minha vida de padeiro. Tinha 23 anos. Nas Caldas tinha-se criado entretanto a União Panificadora Caldense, que funcionava na antiga padaria do César Gomes. Só mais tarde se construiria o edifício novo na estrada de Tornada que, enfim, hoje já é velho e está abandonado. A par da minha profissão de forneiro na padaria eu tinha outra actividade que me sempre me apaixonou – tocava na Banda Comércio e Indústria. E foi num dia, quando ia para o ensaio da banda, ao passar pela antiga prisão (onde hoje é o Turismo e o restaurante Praça da Fruta), que vejo um edital a dizer que se recrutavam guarda prisionais. Eu confesso que, já na altura, admirava os guarda prisionais. O tribunal das Caldas estava em construção e havia lá brigadas de reclusos a trabalhar, vigiados por guardas prisionais, todos fardados. E aquilo impressionava-me. E depois… enfim, um emprego no Estado sempre era outra coisa. E foi assim que meti os papéis e fui aceite. Na altura bastava ter a 4ª classe. Hoje é preciso ter o 12º ano. Fiz a aprendizagem na antiga Cadeia Central de Lisboa, que ficava no Linhó. Aprendíamos Direito Prisional e também tínhamos aulas de Moral e Religião. Acabei a formação em Outubro de 1963 e fui colocada na então designada Colónia Penal de Sintra. Fiquei ali dois anos e foi lá que me casei, em 1965. A Madalena, a minha mulher, é de Santa Catarina e conhecia-a nas Caldas por intermédio do irmão que era padeiro tal como eu. Depois de termos dado o nó, ficámos a viver uns meses na casa dos meus sogros, porque eu tinha outras ambições. O ordenado era baixo e eu aspirava poder ganhar dinheiro para construir uma casa. Foi assim que pedi a demissão dos Serviços Prisionais e arranquei para a Alemanha. A minha mulher foi lá ter comigo cinco meses depois. Estive emigrado sete anos em Singen, uma cidadezinha perto da fronteira com a Suíça que tinha uma grande fábrica de alumínio. Foi lá que ganhámos o suficiente para construir a casa onde ainda hoje vivo na Santa Rita, ali para os lados do Coto. Regressei a Portugal em 1973 e pedi para reingressar nos Serviços Prisionais. Fui parar à Prisão Hospital de Caxias. Não era a cadeia onde estavam os presos políticos, mas ficava lá perto. Um ano depois dá-se o 25 de Abril. Eu nem estava de serviço nesse dia, mas apresentei-me a 26 e fui para o meu posto numa guarita. Até que veio a tropa tomar conta daquilo e um sargento mandou-me sair e ir para casa. No dia seguinte retomei o trabalho, agora com novas chefias e ali fiquei até Abril de 1975 quando fui inaugurar a cadeia de Vale de Judeus, que é ainda hoje a cadeia de mais alta segurança do país. Quando lá cheguei ainda nem havia reclusos. Estivemos ali umas semanas sem presos, só a fazer vistorias e inspecções até que nos mandaram os primeiros reclusos: os antigos agentes da Pide. Sim, foram os Pides a inaugurar a cadeira de Vale de Judeus. Como eu tinha sido padeiro, fiquei adstrito ao serviço da padaria. E tinha como ajudantes os agentes da Pide que agora estavam ali presos. A História tem destas coisas. Foi por essa altura que houve duas fugas de Pides de Vale de Judeus. Numa delas ‘fugiram mais de 89’ como mais tarde escreveria Ary dos Santos num poema cantado pelo Fernando Tordo. Dessas duas fugas, na primeira eu estava de folga e, mesmo que estivesse de serviço, dificilmente teria visto alguma coisa porque estaria na padaria. Na segunda, eu já não estava em Vale de Judeus porque em Abril de 1976 fui transferido para as Caldas. Pude finalmente gozar-me da minha casinha em Santa Rita porque até então a minha mulher acompanhava-me sempre e vivíamos nos bairros dos guardas prisionais. E pude também voltar a tocar na Banda Comércio e Indústria. Sim, porque eu sempre tive o bichinho da banda. Estive no Estabelecimento Prisional das Caldas entre 1976 e 1981, quando fui promovido a subchefe e transferido para o Estabelecimento Prisional Regional de Leiria. Depois de uma curta passagem por Tires onde fiz o curso de chefe, continuei em Leiria, mas desta vez no Estabelecimento Prisional da cidade. Ao todo, foram 15 anos a ir e vir, de comboio ou de camioneta, para a capital do distrito. Porque desta vez a família ficou a viver nas Caldas. Consegui voltar para casa em 1996. Trabalhei mais três anos aqui no Estabelecimento Prisional das Caldas da Rainha e reformei-me em 1999, com 60 anos. Ainda me lembro do último dia de trabalho: assinei o ponto, fui fazer esta fotografia e depois fui para casa. Triste. Confesso que fui triste porque tive a sensação de que isto era o princípio do fim. Depois de me reformar, enquanto os meus netos eram pequenos, ainda os ia levar e trazer à escola. Mas agora entretenho-me lá numas hortitas que tenho perto de casa.
JUSTIÇA E HUMANIDADE
O meu lema como guarda prisional foi sempre este: justiça e humanidade. Tanto com os reclusos, como com os subordinados. Com estes sempre me considerei um irmão mais velho. Ganhei sete louvores ao longo da minha carreira. Mas por ter feito coisas boas e não coisas más. Porque quando eu entrei para os Serviços Prisionais, naquele tempo os chefes ruins e malandros é que eram louvados. Com os reclusos, mais de uma vez tive que dar um par de estalos nalguns. Mas era para o bem deles e alguns até me agradeciam. Ainda hoje, muitas vezes encontro ex-reclusos na rua que, não só me cumprimentam, como vêm mesmo falar comigo. Alguns chegaram a dizer-me que eu fui um pai para eles. O tipo de reclusos mudou muito. Quando eu comecei a trabalhar nem sequer se ouvia falar em droga. Eram condenados por homicídios, questões de partilhas, de estremas de terrenos, de paixões. Gente que muitas vezes não era verdadeiramente criminosa, mas que tinha tido um mau momento e estragara a vida. Ou então vadios, que não queriam trabalhar. Mas ultimamente a maior parte da população prisional está toda relacionada com crimes ligados à droga, essa praga que matou tanta gente e destruiu tantos lares. Há mais diferenças entre o hoje e o ontem. Dantes os reclusos respeitavam mais os guarda prisionais, mas ultimamente isso já não era bem assim. Se tenho saudades das cadeias? Tenho. Sempre gostei do meu trabalho. E sempre me dei bem com os colegas e com as direcções, mas gostaria de destacar o ex-director da cadeia das Caldas, Nazareth Barbosa e a actual directora Joana Patuleia. Um guarda prisional não está ali só para abrir e fechar portas. Há inúmeras tarefas dentro de uma cadeia que é preciso assegurar e que as pessoas nem imaginam. Trabalha-se 24 horas por dia, mas eu nem me queixava dos turnos da noite porque no dia seguinte estava de folga. Houve uma altura em que fui guarda motorista e transportava os reclusos nos carros celulares. Acho que fiquei a conhecer todos os tribunais e estabelecimentos prisionais do país. Mas nem tudo eram rosas. Corri perigos para proteger reclusos. Mais de uma vez tive que fugir com a carrinha quando a população queria linchar os presos à entrada ou saída dos tribunais. Uma vez, em Santarém, por pouco não nos deitavam fogo, ao recluso e a nós. Mas também aconteceu o contrário: no Cartaxo o povo queria libertar uma mulher que tinha morto o marido e que nós levávamos ao tribunal. Devo dizer que nunca chorei tanto num julgamento – aquela mulher e os filhos sofreram tanto às mãos do marido…! E acabou por ir para casa sem ser condenada. Nestes anos todos nunca tive nenhuma fuga quando estava de serviço. Mas capturei alguns reclusos que se tinham evadido e participei em operações de caça ao homem. Felizmente nunca precisei de disparar uma arma. Bom, uma vez, aqui nas Caldas… Estávamos dois guardas no turno da noite e às tantas começamos a ouvir um estardalhaço numa das alas que parecia que os reclusos estavam a dar cabo das portas das celas. Um barulho metálico, desenfreado, que ecoava pela prisão toda. Pensamos que era uma fuga e eu agarrei na metralhadora e subi para o telhado. O meu colega ficou cá em baixo a guardar a saída. Até que descobrimos o que tinha acontecido: os reclusos tinham latas de conserva a fazer de cinzeiros no corredor e houve uma ratazana que afocinhou numa das latas e não conseguia sair. Andava por ali desvairada de encontro às portas e às grades a fazer aquele barulho todo. Lá desci do telhado e arrumei a metralhadora. Bastou uma vassoura para resolver o assunto.
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