O mês de Junho é um mês em que se celebram factos importantes da história Bordaliana: o nascimento do Zé Povinho no dia 12 e a escritura da fábrica das Caldas assinada a 30 de Junho. Festejando tais factos, aqui se deixa uma despretensiosa crónica em que a memória de Rafael Bordalo Pinheiro é celebrada.
Illmº. e Exmº. Senhor.
Agradecendo a carta de V. Exª. apresso-me a dizer-lhe que estou inteiramente à sua disposição para realizar o trabalho na sua casa de Benfica. V.Exª. pode dispor de mim todos os dias, exceptuando as terças e quartas-feiras que são destinadas aos trabalhos do meu jornal. Quando V. Exª. achar conveniente, não tem mais do que marcar-me o dia e a hora em que devo estar em Benfica e assim me acharei inteiramente às suas ordens, para evitar-lhe o incómodo de não estar em sua casa. Esperando as suas ordens tenho a honra de assinar-me
De V.ª. Exª. muito (…)
e amigo muito obrigado
Lisboa C. de Rª. Rafael Bordalo Pinheiro
12 de Maio de 1891
Exmº. Amigo e Sr. José Leite Guimarães
Permita-me meu Amigo que lhe envie juntamente a importância deste semestre da sua Casa, e lhe peça a fineza de me indicar pelo portador que é o meu Amigo Gonzaga Gomes, encarregado de todos os meus negócios, o dia e a hora em que poderei procurar V. Exª. para regularizar as minhas contas atrasadas e agradecer-lhe mais uma vez, todos os favores que me tem dispensado e a enorme benevolência que tem tido comigo.
Sempre muito e muito grato,
Amigo dedicado de V. Exª.
Rafael Bordalo Pinheiro
Lisboa C. da Rª.
24 de Novembro de 1899
Este é o teor de duas de catorze cartas da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro, escritas entre 12 de Maio de 1891 e 24 de Novembro de 1899, todas elas endereçadas a José Leite Guimarães. Algumas são remetidas de Caldas da Rainha, mas outras têm a particularidade de serem remetidas de Lisboa, C. Rª., o que não deixa de ser curioso. Bordalo não saberia onde estava, ou estando em Lisboa, sentia-se como se nas Caldas estivesse?
Estas cartas fazem parte do acervo do Museu da Cerâmica e foram compradas num leilão pelo respetivo Grupo de Amigos que depois as ofertou ao referido Museu.
Tive a possibilidade de ler as referidas cartas, facto que agradeço ao responsável pelo Museu, e hoje trago ao conhecimento público a primeira e a última das missivas deste precioso conjunto epistolar.
Mas desde logo uma pergunta se nos coloca: quem foi este José Leite Guimarães, e que relações existiam entre este cavalheiro e Bordalo, a exigir tanta troca de correspondência?
Como descobrir? Pegamos na nossa lente, no nosso cachimbo e armados em Sherlock Holmes começamos a investigar.
Eis o resultado dessa esforçada e pormenorizada investigação:
José Leite Guimarães era o proprietário de uma casa apalaçada situada em Benfica que tinha herdado, conjuntamente com sua irmã, do tio António José Leite Guimarães, tendo este tomado o seu apelido do nome da sua cidade natal.
O Tio António José Leite Guimarães, um torna-viagem que fez fortuna do Brasil, regressou a Portugal em 1851, tendo sido posteriormente agraciado pela Rainha D. Maria II, com o título de Barão da Glória.
Em 1859 adquiriu a quinta Beau-Séjour a D. Maria Isabel Allen Palmeira, sobrinha e herdeira da Baronesa da Regaleira, D. Ermelinda Allen Monteiro de Almeida, a quem se deve o nome pelo qual é atualmente conhecido o palacete: Beau-Séjour.
Mas antes que corramos risco de nos perdermos nesta intricada história de sobrinhos herdeiros ou de sermos agraciados com um qualquer título, – a fazer fé no velho dito de Almeida Garret, «foge cão, que te fazem barão! … para onde, se me fazem visconde?», – regressamos ao proprietário com quem Rafael Bordalo Pinheiro trocou a correspondência acima identificada: o sobrinho herdeiro, José Leite Guimarães, que entrou na posse do referido imóvel no ano de 1876.
Ora bem: este sortudo herdeiro, tinha conhecimentos com alguns membros do «Grupo do Leão», um grupo de artistas que se reunia em pantagruélicas jantaradas, na cervejaria «Leão de Ouro», situada na atual Rua 1º. de Dezembro, em Lisboa.
Como é já do nosso conhecimento, Rafael Bordalo Pinheiro fazia parte deste seleto grupo e a comprová-lo estava a sua rotunda figura, principalmente quando observada a três quartos.
Adiantando caminho que a crónica vai longa, o dono do palacete Beau-Séjour resolveu proceder a profundos melhoramentos no interior do mesmo.
E Rafael Bordalo Pinheiro foi chamado a dar a sua colaboração; e fê-lo preenchendo o palacete com uma grande variedade de elementos decorativos cerâmicos, feitos na sua fábrica das Caldas.
Desde logo nos chama a atenção o lavabo na antecâmara da casa do jantar da residência, composto por um variado conjunto de elementos marinhos e de caça, sendo debruado a azulejo.
Este painel cerâmico integra-se no período criativo de Bordalo Pinheiro, definido por Julieta Ferrão, por se caracterizar «… por uma miscelânea deslumbrante de produtos em que predominam as “suspensões” ornamentadas de mexilhões, alcofas, abanos, pratos com redes de pesca, outros com fundo simulando musgo em que uma numerosa faunas de répteis evoluciona …».
Também digno de realce é o candeeiro decorado com flores e insetos, que se encontra na Sala de Jantar e do qual Bordalo dá nota de já o ter começado na sua carta datada de 10 de Junho de 1891.
Uma coincidência assaz curiosa é que na decoração da Sala de Jantar do palacete Beau-Séjour, trabalharam três irmãos Bordalo: Maria Augusta que pintou painéis no teto, Columbano autor de três telas datadas de 1887 e Rafael que, além do candeeiro, foi também o responsável pela decoração da sanca dominante ao longo das paredes.
A finalizar, vamos mais uma vez pegar nas cartas de Bordalo e transcrever mais uma, esta datada de 25 de Novembro de 1891. Mas, antes da sua transcrição, um aparte: a letra de Bordalo não facilita em nada a missão do escriba. Uma letra escrita com um fino aparo, ligeiramente inclinada à direita, com pouca elevação nas letras altas, parece-se por vezes mais com caracteres hieroglíficos, do que com a escrita escorreita de quem possui, em alto nível, sentido estético.
Há outro assunto que Bordalo trata nas suas cartas: o facto de ter débitos a saldar, para os quais pede a compreensão de José Leite Guimarães. De que se tratará?
Em Lisboa, Rafael tinha a sua residência no Largo da Albergaria, hoje Largo Rafael Bordalo Pinheiro, num prédio pertencente a José Leite de Guimarães. E pelo que nos é dado ler, Rafael tinha valores em débito para com Leite Guimarães que eram referentes a rendas em atraso! Quem haveria de dizer que um dos homens mais populares do país, respeitado por uns, odiado por outros, dono de um jornal, sócio de uma fábrica de cerâmica, não dispunha de dinheiro suficiente para satisfazer um dos mais básicos direitos, o direito à habitação. Ele bem o confessou quando disse: «não recebendo há muito um único centil pelo meu trabalho nas Caldas» e lá esperava o auxílio dos «ministérios» para resolver os défices da sua fábrica. Lá diz o ditado: «as aparências por vezes enganam» …
Quantos problemas não teve Bordalo para conseguir que a laboração da sua fábrica não se interrompesse para sempre. E confiava que a resolução dos mesmos pudesse ficar a dever-se aos «ministérios»! Que ilusão. O seu engenho artístico não se ajustava à exigente gestão a aplicar ao funcionamento da sua fábrica. Os políticos sabiam o caminho, vinham até às Caldas, apareciam pela fábrica, davam-lhe pancadinhas nas costas e ele com aquele seu feitio generoso a todos oferecia peças únicas. Depois acenavam um adeus, regressaram a penates e esqueciam logo as promessas de ajuda feitas horas atrás. Onde é que eu já visto?
Isabel Castanheira
Bibliografia: O Beau-Séjour Uma Quinta Romântica de Lisboa, de Teresa Leonor M. Vale, Livros Horizonte, Coleção Cidade de Lisboa, 1992.
Illmº. e Exmº. Senhor
José Leite Guimarães
Meu bondoso Amigo
Tenho-o procurado por duas vezes na sua Casa de Benfica sem ter tido a fortuna de o encontrar, e ontem por uma estranha coincidência procurava eu V.Ex.ª na sua casa em Lisboa, no mesmo momento que o meu bom amigo tinha a bondade de deixar em minha casa o seu delicado e generoso cartão.
Agradeço muito penhorado as suas exageradas expressões e alegro-me imenso que o meu trabalho o satisfaça tão completamente, tendo só como único valor o ter sido o primeiro e provavelmente o único executado por aquele processo.
Não tive ocasião de encontrar o Manuel João para lhe indicar a colocação das parras no teto, e outras pequenos coisas, parece também que o candeeiro tem tudo a lucrar sendo pintado de verde-escuro, porque o doirado o efeito das loiças, talvez por ser fosco empobrece-as bastante. Como o Vilaça com quem já falei em face do candeeiro, está agora trabalhando em sua casa poderá ele melhor do que eu, ensaiar a cor em harmonia com a loiça, e indicá-la ao Manuel João. Infelizmente não posso demorar-me em Lisboa, senão por poucos dias, porque tenho de começar apressadamente a obra para o Bussaco, o que me obriga a permanecer nas Caldas, pelo que devo partir hoje ou amanhã.
Julgo também que a sua sala de jantar lucrará em fazer-lhe um resguardo para (?) com plantas, formado por azulejos iguais aos do rodapé da fonte, nas duas janelas que separam a sala da copa.
Os vidros vermelhos e amarelos das sobre portas (?) substituídos por um só vidro fosco, tendo pintados alguns frutos ou caça, acentuar-lhe-ão muito a beleza da decoração da sala. Com divagações afastei-me do meu fim principal que é pedir a V.Ex.ª. mais uma vez a sua benévola espera para o meu já tão atrasado débito, porque infelizmente a minha situação com a fábrica, meu rendimento mais valioso, continua como há seis meses, não recebendo há muito um único centil pelo meu trabalho nas Caldas, continuo sempre na esperança de ver realizadas as repetidas promessas dos Ministros e mais pessoas que dizem interessar-se pelas indústrias nacionais. Espero pelos (…) legislativas, como última apelação, e é por isso que peço a V.Exª. o favor de me alargar o prazo para o cumprimento do meu dever; porque embora o negócio da fábrica não chegar a realizar-se, resta-me ainda a obra do Bussaco que decerto me fornecerá os meios de satisfazer os meus compromissos. Era este o motivo por que o procurei para de viva voz lhe expor a minha situação. Desculpe-me pois V.Exª. estes tristes detalhes, e muito e muito agradecido lhe ficará sempre pelas bondosas e animadoras palavras quem tem a honra de ser
de V.Ex.ª amigo sincero e muito grato
Rafael Bordalo Pinheiro






























