Um teatro que aborda a velhice, a vida e o medo da morte

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Com muita diversão a dupla de opostos aborda questões sérias e deixa o público a pensar - Isaque Vicente

“Crise no Parque Eduardo VII” é uma peça que alerta para a situação dos mais velhos e que foi escolhida para abrir a 5ª edição do “Ao Teatro!”, no cine-teatro na noite de 9 de Março. Este é um festival organizado por um grupo amador da Benedita que até ao final do mês traz mais cinco actuações ao concelho de Alcobaça.

Dois velhos estão sentados num banco do Parque Eduardo VII e conversam. Um é corajoso e revolucionário, o outro é cauteloso e cerebral. Mas partilham o medo da morte, o peso da idade e a tristeza e solidão a que a sociedade submete os idosos.
Começamos por conhecer os problemas do segundo, o Hugo, que é responsável pelo prédio onde vive há 42 anos e que está prestes a ser substituído por uma empresa de gestão de condomínios. Medroso, Hugo até cede à chantagem e paga a um jovem para que este lhe permita passar pelo túnel que fica no caminho da sua casa.
Mas João Bernardo, o corajoso, trata de defender o recente amigo contra tudo e todos, assumindo, para tal, diferentes personagens. Primeiro diz-se capitão da polícia para afastar o bandido que cobrava pela passagem e depois “transforma-se” em advogado e consegue convencer o presidente da Comissão de Moradores a não chatear Hugo. Utiliza as mentiras, ou como lhes chama, “adaptações da realidade”, e junta-lhes muita lábia. “A gente usa-se da personalidade que dá mais jeito”, explica.
E esse é o motivo da discussão que abre a peça: Hugo queixa-se de não saber quem é o recente amigo, que a cada dia assume um nome e profissão diferente.

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LENTOS SIM, INÚTEIS NUNCA

João é um comunista convicto, a quem a idade não belisca o espírito revolucionário e interventivo, e nota que “aos dois anos largam-nos e caímos no chão e 70 anos depois acontece o mesmo”, mas realça que velhos ou lentos até podem ser, mas inúteis nunca.
“Vocês coleccionam carros antigos, móveis antigos, tudo antigo, mas pessoas antigas não, elas parecem-se com o vosso futuro e vocês têm medo dele, mas quando chegarem a essa altura vão é ter terror. Os velhos são sobreviventes, há qualquer coisa que eles sabem. Não pensem que são gente que se deixou ficar até tarde só para vos estragar a festa. Os muito velhos são autênticos milagres, tal como os recém-nascidos. A beira do princípio é tão preciosa como a beira do fim”.
Na sua argumentação, João Bernardo salienta que “as ideias mantém-se, são melhores que as pessoas que lhes deram origem” e que “as saudades matam mais que a insuficiência cardíaca”.
Mas o amigo mantém-se na retaguarda e prefere “salvar o emprego e esquecer a causa”. O revolucionário, no entanto, não o permite, porque “quando uma pessoa se rende ao opressor é um ninguém”.
Só que, entretanto, aparece em cena a filha de João Bernardo, Catarina, que também esteve ligada ao partido, mas se afastou depois de ver que nada tinha mudado no mundo.
Ela vive em pânico com medo dos perigos que a cidade e o parque encerram para o pai, mas ele tem medo do que a filha “possa fazer em nome do que chama amor”, como fechá-lo num lar.
Essa é, aliás, uma das três hipóteses que Catarina dá ao pai, além de viver consigo ou manter-se em casa, contactável, e almoçar e passar a tarde num centro de dia.
Ele rejeita tudo, mas ela está irredutível: “estou disposta a deixar que o pai me odeie”, realça a filha, mas João inventa nova história para se escapar da filha.
Na última cena, João Bernardo reencontra o amigo no Parque e diz-lhe que contou a verdade à filha e que agora vive num centro de dia. Hugo ficou sem emprego e sem indemnização e o bandido que o extorquia voltou e exige agora o dobro do dinheiro.
Nesta cena, o revolucionário conta então a Hugo quem é realmente: “o meu nome é João Bernardo, fui empregado de mesa 42 anos e reformei-me, moro no lar de Belém e nunca fui nem sou ninguém”.

O TEATRO A CUMPRIR A SUA FUNÇÃO

Esta é uma peça que, sendo uma comédia, trata temas sérios como os pensamentos e sentimentos dos idosos, a forma como são tratados, a dificuldade em encarar a velhice e os medos que têm. Mas trata também temas como a prostituição e a toxicodependência, nas aventuras da engraçada dupla.
Retrata as conversas em que duas pessoas falam, mas não ouvem o que a outra diz, aborda o olhar para o fim de vida e a falta de afectividade. Critica a falta de atitude e o comodismo e envolve o espectador numa nuvem de pensamentos.
No final, as mais de cem pessoas que estavam na sala levantaram-se para bater uma demorada salva de palmas aos actores.
Já à saída, o espectador Luís Rodrigues, do Vimeiro, confessava-se ainda extasiado com a peça. “Gostei imenso, a história em si é muito boa, aborda um tema brutal, que é sensível e complexo”, afirmou, elogiando a qualidade dos actores em palco. “Houve momentos em que o público ficou completamente em silêncio, a pensar”, notou.
Luís Rodrigues considera o Ao Teatro! Festival “uma iniciativa brilhante que no ano passado teve espectáculos muito bons”. A terminar aconselhou todos a ver esta peça e a “virem ao teatro”.
“Crise no Parque Eduardo VII” é baseado na obra “Eu não sou Rappaport”, de Herb Gardner, que se passa no Central Park, de Nova Iorque. Foi adaptada por João Mota que escolheu o parque lisboeta porque ali existe toda a panóplia de situações que envolve o enredo.
A ligação das cenas é feita ao som do fado, numa peça onde também entra uma música de Zeca Afonso.

Teatro na Benedita e na Maiorga

O Ao Teatro! Festival é organizado pelo grupo de teatro amador Gambuzinos com 1 Pé de Fora e custa 6500 euros, sendo 3500 euros financiados pela Câmara de Alcobaça.
Até dia 31 de Março é possível apreciar mais cinco peças de teatro, duas de companhias internacionais. Amanhã, 17 de Março, pelas 21h30, realiza-se “Stand Down”, de Ángel Fragua, no Centro Cultural Gonçalves Sapinho (5 euros bilhete geral ou 3 euros para estudantes, séniores e sócios). No domingo, a companhia anfitriã apresenta “(…) e a vida, afinal, é como as orquídeas” no Centro de Bem-Estar Social de Maiorga (17h00 – 2 euros).
O festival volta à Benedita no dia 23 com “A Noiva de D. Quixote”, pela EME 2, da Galiza (21h30), “ATM – Atelier de Tempos Mortos” da Companhia do Chapitô no dia seguinte (21h30) e “Alguém para Fugir Comigo”, da Resta 1 Colectivo de Teatro no último dia do mês (21h30). Os bilhetes para estes três espectáculos custam 5 euros ou 3 euros para estudantes, séniores e sócios.

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