“Se um autor aos 81 anos ainda escreve o seu melhor livro, então isto está para durar”, Saramago nas Caldas da Rainha em 2004

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O Prémio Nobel da Literatura faleceu na sexta-feira, 18 de Junho, aos 87 anos, na sua casa em Lanzarote (Ilhas Canárias). O seu corpo foi cremado no domingo, dia 20 de Junho, em Lisboa.
José Saramago esteve nas Caldas da Rainha em 24 de Outubro de 1998 – o ano em que recebeu o Prémio Nobel – tendo na altura sido agraciado com a Medalha de Honra da Cidade. Fez uma sessão de autógrafos na Livraria 107 e a fila de espera para uma assinatura prolongava-se pela rua fora, recordou a livreira Isabel Castanheira.
Dezoito anos antes, em 1980, Saramago já tinha visitado a cidade a convite de Zé Carlos Faria para uma palestra na então Casa da Cultura e recolheu impressões para o seu livro Viagem a Portugal.
Em 2001 participou numa sessão literária no Bombarral tendo apresentado “A Caverna”, a história de uma família que se dedicava à cerâmica artesanal e a vendia num grande centro comercial até que um dias são confrontados com a substituição da sua produção por matérias em plástico.
Saramago regressou às Caldas em 2004, a convite da Livraria 107, para dar a conhecer “O Ensaio sobre a Lucidez”, que conta a história de uma comunidade onde as pessoas decidem votar em branco. Foi com a sala do GAT a abarrotar de gente que o Nobel discordou de alguém que considerava o Ensaio como um dos seus melhores livros. “Se aos 81 anos um autor ainda escreve o seu melhor livro, então isto está para durar”, disse naquela altura, sorrindo.

Gostava do parque e das cerâmicas das Caldas

No seu livro Viagem a Portugal, José Saramago dedica duas páginas às Caldas, mas não se deixou entusiasmar com a Praça da Fruta. “Um mercado para avios domésticos, não tem mais pitoresco do que isso. Em grande engano caem os turistas que indo de passagem vêem o magote de vendedores e compradores, tão ao natural, e irrompem excitadíssimos, enristando máquinas fotográficas  à procura de um ângulo rara e do raro espécime que lhe enriquecerá a colecção. Em geral, o turista fica frustrado. Para ver comprar e vender não precisava vir tão longe”.
Gostou, sim, de visitar o Parque, “um local aprazível” e também apreciou o Museu de José Malhoa, pois  descreveu longamente os autores e obras da colecção daquele espaço.
“Também nas Caldas se deverão ver as cerâmicas. O viajante confessa que tem um sério amor por estes barros, e tão aberto que precisa de vigiar-se para não caiar em tolerâncias universais”. Diz que não se toma por entendido mas “é familiar de D. Maria dos Cacos, do Manuel Mafra, dos Alves Cunha, dos Elias, do Bordalo Pinheiro, do Costa Mota Sobrinho, para não falar de anónimos fabricantes que não punham  marca nas suas peças e tantas vezes as modelavam magnificas. Se o viajante começa a falar de louça das Caldas, há risco de levar o dia todo: cale-se pois, e siga viagem”.
Antes de partir para Óbidos visitou demoradamente a Igreja de N. Sra. do Pópulo, tendo apreciado o templo ao pormenor.
Óbidos, onde viria a pernoitar, achou-a demasiado florida. Analisou o património da vila e na Igreja de Sta. Maria destacou o túmulo do alcaide mor de Óbidos e sua mulher. Mas mostrou pouco entusiasmo pelas pinturas de Josefa de Ayala.

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(Caldas da Rainha, 13/4/2004)

A noite está tão fria que, quando entramos no átrio, a nossa respiração cria uma nuvem de humidade que não tarda a desvanecer-se no ar.
A sala do GAT está completamente cheia. Os rapazes a as raparigas sentados nos degraus, encolhem as pernas para arranjarem espaço para os que continuam a chegar.
Já passa das nove e um quarto quando o meu telemóvel toca.
Atendo e reconheço a voz de Zeferino Coelho, o editor, que me diz que já chegaram às Caldas e estão desejosos de comer qualquer coisa.
Apanhada de surpresa, pois tendo-os convidado para jantar tinha visto esse convite declinado por razões logísticas, garanti que alguma coisa se havia de arranjar.
E onde é que nos íamos encontrar? No meio da Praça da Fruta, deserta a estas horas da noite, foi a minha proposta, imediatamente aceite.
Após a subida em passo apressado da Rua do Parque, encontro-me, como combinado, com José Saramago, Pilar del Rio e Zeferino Coelho.
Aviados os protocolares cumprimentos, metemos pés a caminho, rumo ao Pachá e, Rua das Montras fora, cruzamo-nos com uns tantos passeantes que, percebíamos, se interrogavam: é ele ou não é?
Uma vez chegados, expliquei a situação ao Paulo que de imediato nos instalou e convidou à recuperação de forças.
Começámos pelas fofas pataniscas, a que se seguiram uns saborosos peixinhos da horta e uma bela saladinha de polvo.
Entretanto vieram para a mesa o pão de centeio e a broa, magnificamente acompanhados pelo queijo de Serpa. Umas fatias de presunto, cortado bem fino, fizeram então a sua entrada, devidamente acompanhadas pelo vinho alentejano.
A conversa, por seu lado, decorria amena e fluida versando assuntos banais do dia a dia.
Satisfeitas as necessidades básicas dos viajantes, ainda houve tempo e espaço para uma farófias e um calicezinho de Ginga. Reconfortados, despedimo-nos e rumámos à Rua Camões.
Quando entrámos na sala, uma calorosa salva de palmas saudou o escritor.
A noite correu rápida. Saramago estava feliz entre os seus leitores e os ouvintes apreciavam a companhia do seu autor.
Mas um momento tinha sido só meu e ainda hoje sinto o sabor doce e acre daquela ginjinha tomada em companhia do único Prémio Nobel da Literatura em Língua Portuguesa.

Isabel Castanheira

O capote, ícone que ficou de um escritor a sonhar com um Mundo melhor

Em 1975 o meu professor e amigo Rogério Ribeiro dirigia e organizava a Exposição «Portugal – Um Ano de Revolução». Alguns de nós ajudavam na montagem.  Durante a revisão de provas para o catálogo, impressionou-me uma notável introdução assinada por um jornalista chamado José Saramago. Dias depois, já em trabalhos finais, tivemos a visita de uma figura esguia e curiosa que vinha antever aquele vibrante painel de um povo e um país em movimento dinâmico. Fomos apresentados e ficámos assim a conhecer o autor do texto, que tudo mirava com bonomia e (alguma) emoção.
Três anos depois surpreendeu-me, numa conferência, a sua clarividente e empenhada defesa da necessidade de agir a favor da importância transformadora da Arte («todo o efeito teve antes a sua causa e toda a causa terá o seu efeito. O efeito do silêncio nada mais pode ser senão silêncio»).
Levou-me isso a convidá-lo, corria o ano de 1980, para uma palestra na Casa da Cultura, acertada para data coincidente com a sua presença na região, onde colhia notas para o que viria a ser  «Viagem a Portugal».
Quem assistiu lembra-se de uma sala cheia, iluminada por palavras sábias na sua singeleza e humor. A conversa continuou depois noite dentro, partilhando pão e vinho. Ficou disso memória na dedicatória deixada com um abraço no meu exemplar dos «Poemas Possíveis»: «numa noite de Abril, quando principiávamos (só principiávamos) a discutir problemas que não têm fim…».
Deste serão ao Prémio Nobel fez-se um caminho marcado por livros fundamentais da língua portuguesa e do património literário da Humanidade. Em Évora, no final de uma sessão no Palácio de D. Manuel, coube-me a honra de, com mais dois amigos, em nome do Sector Intelectual do PCP, lhe oferecer um presente. Tratava-se de um capote alentejano.
A alegria com que foi recebido era bem patente. Pilar repetia: – Que bonito, que bonito! E Saramago disse num sorriso feliz:  – Vou levá-lo para Estocolmo! Confesso não ter levado isso muito a sério e daí os meus olhos rasos de água que o viram sair do avião embrulhado orgulhosamente no seu capote, ícone que ficou de um escritor a sonhar com um Mundo melhor.
«O único valor que considero revolucionário é a bondade», dizia. Nestes tempos de raiva e dor, que ninguém se esqueça disso. Resta-nos a divisa do «Ensaio sobre a Lucidez»: – «Uivemos, disse o cão»…

José Carlos Faria

José Saramago

Lembro-me, como se fosse hoje. No ano de 1998, estava a estudar uma peça, que seria levada à cena algum tempo depois, quando, num intervalo, enquanto sorvia um chimarrão quente e bem preparado, liguei a televisão para ficar a par das notícias do momento, e eis que a emissão, toda ela, era de parabenização ao glorioso José Saramago, por ter-lhe sido atribuído o Prémio Nobel de Literatura.
Confesso que me apeteceu abrir a janela do apartamento, enfrentando aquela fantástica São Paulo, e, aos gritos, manifestar toda a minha alegria. O que fiz, de imediato, foi telefonar para todos os amigos da Academia Paulista de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do Instituto Cultural e Humanístico “José Martins Fontes”, a tentar dar a notícia em primeira mão, enganei-me, todos já a sabiam, a informação correra célere, existia já uma imensa panóplia de admiradores, em manifestação profunda e, quase, alucinada, em regozijo pela conquista do grande escritor. Estávamos todos eufóricos.
O Brasil respirou alegria através das narinas de José Saramago. O mesmo Brasil que hoje chora a sua morte, através da tristeza instalada no coração de todos aqueles que adoram a sua literatura. E eu sou um deles. Tenho, pousados nas estantes lusófonas, todos os seus livros, já gastos pela leitura. Já não tenho vontade de abrir janelas, já não estou em São Paulo, já não me apetece dar telefonemas…

Rui Calisto

Morreu um dos nossos maiores

Em Portugal neste dia 18 de Junho de 2010, com a morte de Saramago, nós portugueses, morremos todos um bocadinho. Saramago foi indiscutivelmente um dos maiores escritores de língua portuguesa de todos os tempos, independentemente, até, do Nobel que lhe foi atribuído;  isto porque, mesmo que o prémio não lhe tivesse sido dado, esse facto não significaria que ele não fosse reconhecido como um dos maiores vultos da nossa cultura de todos os tempos.
Para além disso Saramago, em minha opinião, será também reconhecido pela sua seriedade, pela sua coerência, na sua qualidade de grande pensador crítico, deste nosso conturbado e confuso  tempo.  Para mim, pessoalmente, mais até do que a sua escrita, eu ficava fascinado com a sua palavra falada.  Saramago que eu procurava nunca perder (a quando de uma sua entrevista) exalava um misto de grande lucidez e de humanidade. Céptico relativamente ao caminho da humanidade, Saramago, marcava-me com a sua palavra, como nenhuma outra personalidade.  Mas, um pouco paradoxalmente, havia no seu cepticismo, indiscutivelmente,  um grande amor pela humanidade.  Saramago não era só uma grande figura da cultura do nosso tempo. Saramago era um homem dotado de uma superioridade ética à prova de bala.
A sua insubmissão, a sua saudável rebeldia, face ao conservadorismo, ao reaccionarismo, são os dos seus maiores legados. Um exemplo que nos deixa, para que sejamos verdadeiros cidadãos e nunca súbditos. Morreu um dos homens mais livres e justos do nosso tempo.   Por outro lado, o seu autodidactismo é paradigmático,  ensinando-nos, com o seu exemplo de vida, que o limite do ser humano está muito para além do que possamos, à primeira vista, imaginar. Saramago não aprendeu, não tinha o saber das academias. Chegou onde chegou por ele, com o seu esforço, com o esforço da sua inteligência superior.
Hoje, a quente, muito pesaroso com esta grande perda, é o que se me oferece dizer.  Se nada dissesse, se nada hoje sobre Saramago escrevesse,  sufocava.   A maior homenagem que lhe podemos prestar é ler e ouvir (as gravações) muito atentamente, das suas sabedoras e muito humanistas palavras.

Fernando Rocha

“Saramago faz parte de nós”

“Conheci Saramago através de uma amiga comum durante a estreia da peça “Ensaio sobre a Cegueira” no teatro de S. João (Porto) – que estreou em Maio de 2004 – mas antes, como sou editor, pedi ao escultor José João de Brito, para realizar uma escultura em homenagem ao Prémio Nobel. E assim se fez uma pequena escultura, com um capote alentejano tal como ele levou à entrega do Nobel.
Saramago e Pilar gostaram muito da peça ainda para mais porque captou o olhar um pouco de nariz empinado de Saramago e que muitos confundiam com alguma sobranceria quando afinal o escritor não via bem e precisava daquele tipo de olhar para ver bem.
O escritor e a mulher acompanhavam-me o meu trabalho na edição e também como fotógrafo.
Sou um fã inveterado da sua escrita, mesmo antes de ter sido publicado o “Memorial do Convento. Saramago faz parte de nós”.

Paulo Gaspar

Uma comoção falar dele

“O Memorial do Convento marcou-me e tocou-me muito. Disse a Saramago que estava a realizar trabalhos inspirados na sua obra e, após alguma desconfiança inicial, quando ele viu o que eu estava fazer incentivou-me a continuar.
Realizei uma exposição com as obras inspiradas naquele livro e Saramago escreveu um texto lindíssimo onde contava que não deixava que lhe adaptassem os livros pois não queria ver as caras das suas personagens. Tinha tal atitude  porque afinal ele não era capaz de as ver. “Sei, finalmente como era Blimunda. Foi preciso esperar vinte anos, mas valeu a pena”.
Era um amigo sempre disposto a ouvir e a falar e que dava grande importância às pessoas. É uma comoção falar dele.
Ele não morreu, já não está connosco mas a sua obra não morrerá. Estive com ele pela ultima vez na sua casa em Lisboa em 2009. Levei-lhe um retrato dele que tinha feito. Disse-me que me ficava a dever dois favores: “Primeiro o que fizeste sobre o Memorial e outro por causa deste retrato”.

José de Santa Bárbara

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