Insondável, enigmático, foi um deus no antigo Egipto e um feiticeiro na Idade Média. Exerceu profundo fascínio sobre artistas e escritores tão diversos como Hemingway, Mark Twain, Dickens, Picasso, Matisse, Salvador Dali, Andy Warhol, Manuel António Pina e
Rafael Bordalo Pinheiro. O poeta Alexandre O’Neill tenta desvendar o mistério que o envolve e questiona-o assim: «[…] De que obscura força és a morada? / Qual o crime de que foste testemunha? / Que deus te deu a repentina unha / que rubrica esta mão, aquela cara? / Gato, cúmplice de um medo / ainda sem palavras, sem enredos, / quem somos nós, teus donos ou teus servos?».
Na Loja 107, entre os livros, as figuras de Bordalo e outras memórias, dormitavam dois gatos, e a sua presença discreta e tranquila contribuía para a atmosfera de intimidade cúmplice em que nos refugiávamos do bulício da rua. Para além destes dois seres ronronantes, muitos outros espreitavam das prateleiras, homenagem do mestre Bordalo aos bichos que mais estimou neste mundo: o gato Pires e à gata Pili.
Na última crónica deixámos a Isabel Castanheira a explicar a um animado grupo, por que razão se encontra o Zé Povinho em cima de um telhado. Esclarecido o enigma, voltamos a acompanhá-la na aventura da descoberta da cidade através das profundas marcas deixadas por Bordalo Pinheiro.
Onde há Bordalo há gatos e é mais do que justa a sua inclusão na rota bordaliana que atravessa a cidade e desagua no Parque. É no encalço destes felinos que segue hoje a Isabel e o seu animado grupo na aventura de “As Caldas de Bordalo”.
Diz-nos a narradora: «Eis-nos agora em frente do n.º 36 da rua Heróis da Grande Guerra, onde os gatos representados num friso de azulejos, nos enfeitiçam com os seus olhares enigmaticamente felinos. Apesar do evidente estado de degradação do edifício, ainda hoje podemos constatar um pouco do encanto policromo de antigamente, conferido pela harmonia de três diferentes padrões de azulejos utilizados na decoração da fachada. Os gatos, de pelagem escura e de orelhas espetadas, têm ao pescoço uma coleira amarela com um guizo pendente e perscrutam, com um profundo olhar verde-esmeralda, um menino equilibrado à beira de um telhado, uns tantos metros mais à frente, no Beco do Borralho. Será possível que num entardecer destes – à hora mágica em que realidade e imaginação se fundem – possamos ver o menino a correr atrás dos gatos, a querer puxar-lhes a cauda ou os bigodes?».
Segue-se uma confissão: «Os gatos de Rafael Bordalo Pinheiro, são uns animais inesperados, sedutores e de presença constante. A mim, já há muito seduziram. Escondidos nas páginas d’ O António Maria, de Pontos nos ii, dos almanaques, muitas vezes me têm lançado olhares plenos de desafio, como que provocando-me a libertá-los dessas páginas esquecidas e a trazê-los à vida».
Vem depois um pouco de história, da cidade e do seu mais ilustre filho adoptivo: «Em 1884, Rafael Bordalo Pinheiro vem para as Caldas da Rainha, literalmente, meter as mãos no barro. E fá-lo precisamente na Fábrica de Gomes de Avelar. É dessa época de aprendizagem e de experimentações um dos primeiros gatos cerâmicos bordalianos: um prato com um gato pintado. Este gato apresenta o mesmo vigor, a mesma genica, a mesma graça, do que os gatos desenhados a carvão, ou a lápis. Não será o facto de se dedicar a um novo processo criativo que impedirá Rafael de continuar a fazer gatos. E eles aí estão – belos e enigmáticos – para serem admirados».
Isabel Castanheira conta-nos depois a ternurenta história da relação de Rafael Bordalo Pinheiro com o gato Pires. O bichano começou por fazer umas tantas diabruras que levaram a família do mestre a fazer-lhe um ultimato. O resultado foi o degredo para a Fábrica das Caldas, mas na hora da partida as denunciantes, esposa e filha, não resistem ao mudo apelo do bicho e lá o levam de volta para Lisboa, onde acompanha o dono até à morte. É neste momento que a narradora convoca Cruz Magalhães, poeta, coleccionador, admirador de Rafael, a quem se deve a criação do museu no Campo Grande, que nos fala dos últimos dias de Bordalo, do gato Pires e da sua recusa em abandonar o leito do dono, persistente para além do falecimento deste. Temporariamente desaparecido, estava, afinal, escondido sob as coroas de flores que cobriam a urna. Depois da descida à terra foi acolhido no regaço terno de Leonor, esposa de um grande actor da época.
Quem seria? Mais um enigma que Isabel Castanheira desvendará perante o emocionado grupo que a acompanha.
Carlos Querido































