Mário Reis: “Caldas é uma Bela Adormecida à espera de ser acordada de um sono profundo”

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“Com uma escultura que representa o corvo e a guitarra portuguesa e funciona também como instrumento de cordas.” - Natacha Narciso

Mário Reis é o autor de “Imersão de Letras”, a primeira peça da nova colecção de cerâmica da Gazeta das Caldas, iniciada este mês. O ceramista escolheu reproduzir as tradicionais banheiras do Hospital Termal e decorou-as com frases de personalidades locais. Nesta edição o autor respondeu a um inquérito onde dá a conhecer um pouco sobre a sua carreira e sobre a actualidade do sector nas Caldas. Falou também sobre as dificuldades de ser artista nesta cidade que, à falta de uma estratégia cultural e turística, “é uma espécie de Bela Adormecida à espera de ser acordada de um sono profundo”.

Nome: Mário Reis
Idade: 47 anos
Naturalidade: Luanda, Angola

AZETA CALDAS: Quando começou a dedicar-se à cerâmica?
MÁRIO REIS: Embora tenha tido contacto com o barro em criança, na olaria do meu avô, foi com 20 anos que tive um contacto mais sério com a cerâmica, num curso de modelação de cerâmica e gesso de dois anos no Cencal. Uns anos mais tarde, com 28 anos, voltaria novamente à cerâmica, vendendo já trabalhos, embora como part-time. Em 2004, com 33 anos viria a dedicar-me exclusivamente à cerâmica.

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GC: Quais são os materiais cerâmicos com que prefere trabalhar?
MR: Como matéria-prima principal utilizo geralmente o grés. Utilizo também outros materiais não cerâmicos que podem ser diversos, ferro, inox, vidro, madeira, entre outros, mas habitualmente é o ferro e o inox.
Brevemente irei juntar-me a um amigo, Milton Dias, que trabalha em Stencil, uma vertente do Graffiti e iremos fazer um trabalho juntos, conciliando as duas técnicas, num espaço de Turismo Rural em Óbidos “Casal da Eira Branca.

“Os benefícios da Molda para os ceramistas são poucos ou nenhuns”

GC: Que opinião tem da Molda? Que benefícios traz aos ceramistas?
MR: Na altura que este evento foi anunciado disse-se que teria uma projeção nacional e até internacional. O que tem acontecido são algumas iniciativas demasiado espaçadas no tempo, divulgadas apenas localmente. Este evento em vez de durar quatro anos devia condensar-se num espaço curto de tempo e concentrar todas as iniciativas para essa altura, como o Folio em Óbidos, e convidar ceramistas nacionais e internacionais.
Os benefícios da Molda para os ceramistas são poucos ou nenhuns. Não basta convidar os autores para uma exposição, só para cumprir calendário. Isto exige esforço de trabalho por parte dos participantes, deve haver um retorno monetário para os ceramistas, quando existem verbas para este evento. Ou no mínimo que seja feito um esforço na dinamização e divulgação do evento. No evento Bom dia Cerâmica em Alcobaça, estes têm sido pagos pela sua participação.

GC: Acha que actualmente há uma retoma da cerâmica na região?
MR: Na indústria nas Caldas para além da Bordallo Pinheiro, da Molda e da Braz Gil que sobreviveram à crise, começaram a surgir alguns nichos de mercado para uma cerâmica de autor, de quantidades mais reduzidas, mas onde se aposta na qualidade e na originalidade. Estes ceramistas embora vivam e trabalhem na região escoam as suas peças para outros locais.

GC: O futuro da cerâmica passa pela indústria, pelo trabalho artístico, ou pela conjugação de ambos?
MR: Penso que todas essas opções podem vingar. Terá que haver sempre a componente artística, a criatividade, a originalidade, a qualidade. Na indústria, a extinta Secla teve nos seus tempos áureos, um modelo que acho que ainda faria sentido nos dias de hoje, trabalhar com criativos, que trariam para as fábricas novas ideias. A questão é que algumas não têm espaço de manobra criativa, produzem o que o cliente quer.

GC: Com que parceiros é que os ceramistas da região podem contar?
MR: A Gazeta das Caldas tem sido um parceiro importante na divulgação dos projetos dos ceramistas. Tem havido algumas parcerias entre ceramistas e fábricas da região. Ainda recentemente o Miguel Neto e a Paula Violante elaboraram na Braz Gil um trabalho para a livraria Lello no Porto. O Museu de Cerâmica está sempre aberto a propostas para exposições. Poderá certamente haver outros possíveis parceiros com que os ceramistas possam contar.

GC:  Acredita que as Caldas tem condições para ser reconhecida como Cidade Criativa (Arts & Crafts) em 2020? 
MR: Isso até pode vir a acontecer. Mas quem vive na cidade sabe que esta tem sido uma cidade de criativos e não tanto uma cidade criativa. A cidade tem produzido muitos artistas que depois a maioria acaba por dar cartas noutras paragens. Tirando algumas iniciativas independentes, a maior parte das vezes sem apoios, não existem eventos culturais com boa divulgação para o exterior. É difícil crescer como artista nesta cidade. No caso da cerâmica, ela está no ADN da cidade mas não podemos estar só agarrados ao passado. Não vejo a existência duma estratégia cultural nem turística. Sinto que as Caldas é uma espécie de Bela Adormecida à espera de ser acordada de um sono profundo. O que diferencia os lugares e os torna únicos são a sua cultura, a sua identidade. Não basta dizer-se que se é uma cidade disto ou daquilo e hastear essa bandeira quando necessário, é preciso orgulharmo-nos, valorizando e promovendo aquilo que nos torna únicos. A Nazaré tem as ondas gigantes, Óbidos tem o castelo, Lourinhã tem os dinossauros, as Caldas tem as termas e a cerâmica que podiam ser uma alavanca na economia local.

GC:  Quais são os ceramistas que mais admira?
MR: Existem vários, falando das Caldas, a maior parte deles já não está entre nós, Armando Correia, Ferreira da Silva, Herculano Elias, os meus tios [João e Armindo Reis], o meu avô [João Reis].
GC: Se não fosse a cerâmica, a que outra arte poderia dedicar-se?
MR: Algo que tivesse relacionado com desenho, talvez ilustração. O gosto pelo desenho apareceu-me primeiro do que a cerâmica.

GC: Que livro está a ler?
MR: Estou a ler “Enquanto Salazar dormia…” de Domingos Amaral.

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