“A Redenção das Águas – As peregrinações de João V à vila das Caldas” é como se designa o novo livro de Carlos Querido, um romance histórico sobre as vindas daquele soberano à vila caldense, entre 1742 e 1750, ano em que acaba por falecer.
Durante aqueles anos, o monarca instala-se na vila arrastando consigo a corte. Como uma fé inabalável nas águas termais, D. João V regressa mais de uma dezena de vezes às Caldas, mesmo contra a opinião dos médicos da corte e do próprio Papa que lhe desaconselham tal tratamento. Mas o rei não cede pois é nas Caldas da Rainha que obtém tranquilidade para o corpo e para a sua alma, já que este rei absolutista sente que se aproxima do fim da sua vida e não lida bem com o facto, sentindo um enorme terror da morte que se aproxima.
Actualmente é difícil imaginar que Caldas da Rainha foi a capital do reino de Portugal naqueles anos de setecentos com as estadias do monarca e da corte na pacata vila que então se transformava numa das localidades mais cosmopolitas do país. Na verdade, Caldas da Rainha foi nesta altura a capital do Império.
Carlos Querido realizou uma profunda investigação história para escrever este livro. Autor de grande rigor, baseia as suas obras em factos históricos e só depois de um pano de fundo bem urdido é que dá lugar a alguma fantasia e ficção.

GAZETA DAS CALDAS – Qual é o ponto de partida para “A Redenção das Águas – As peregrinações de João V à vila das Caldas”?
CARLOS QUERIDO – O ponto de partida para esta obra está relacionado com o facto do rei D. João V ter sido vítima de “um súbito e estranho estupor, um mal”, uma provável trombose, que o privou dos sentidos e lhe deixou a cara à banda. O monarca veio então às termas caldenses, onde chega a 10 de Maio de 1742 (dois meses depois do “ataque”) e além de ter trazido toda a corte consigo, é aqui que procura a cura para a sua doença. Entre 1742 e 1750 ele virá 13 vezes às Caldas. Creio que o soberano terá uma obsessão, acha mesmo que as águas termais o curarão dessa doença que lhe paralisa o corpo e vem mesmo contra o conselho dos médicos da corte e do Papa Bento XIV. Mas ele não segue esses pareceres, zanga-se e irrita-se quando lhe dizem para não vir. Só que os conselhos médicos são correctos e numa das vindas o rei sente-se mal e tem que voltar para trás…
Contra tudo e contra todos D. João V vem para as Caldas e aqui procura salvação não só para o seu corpo porque ele quer também a salvação da sua alma.
GC – E porque pensava ele que salvaria a alma nas Caldas?
CQ – Ele vive naquela altura numa fase de prostração, dir-se-ia hoje numa fase depressiva. Na verdade, o rei é um homem atormentado e encontra nas Caldas alguma paz, e é por isso que continua a vir cá até ao fim dos seus dias. Além da doença que o consome fisicamente, não lida bem com o remorso dos seus pecados conventuais que lhe causam um profundo sofrimento.
O monarca está melancólico e nostálgico, não só pela doença, mas também pela proximidade da morte e pela dificuldade que há em conciliar o estatuto de um rei absoluto com a sua mortalidade. Como tem muito medo da morte, vê na água esse papel de redenção. A Redenção e as peregrinações têm a ver com o facto de ele ser um individuo de fé. É preciso acreditar nos poderes curativos da água. É pois um rei peregrino em busca das águas que possuem uma certa sacralização para o monarca.
A água entra aqui na procura do rei para a salvação do seu corpo e da sua alma. D. João V é um rei absoluto e magnânimo que vive com terror da morte.
GC – Qual é o papel da própria localidade nesta obra?
CQ – As Caldas da Rainha é neste livro o pano de fundo, o cenário onde se vão cruzar muitas histórias: a do rei e das pessoas que o acompanham.
Na primeira vinda, em Maio de 1742, foram necessárias 62 casas da vila para alojar o séquito real. Era com grande pompa e circunstância que era organizado o cortejo entre o Rossio (onde hoje é a Praça da Fruta) e o Hospital Termal para acompanhar o monarca aos banhos.
As histórias passam-se também em várias quintas nos arredores que alojam os nobres que acompanham o rei.
É na própria vila que vão convergir as várias histórias e
personagens do tempo de D. João V. É verdade, os nobres e clérigos ocuparam as casas das pessoas, mas também reza a história que estas foram bem compensadas pelo incómodo. Aliás, depois da estada do rei e corte, a vila nunca mais foi a mesma.
Enquanto o rei cá esteve, a vila transformou-se na capital do Império e foi cá que D. João V ainda recebeu o então Conde de Oeiras, mais tarde Marquês de Pombal. Em 27 de Fevereiro de 1747 pede-lhe que este planeie e execute uma série de obras e melhoramentos. Serão então da autoria de Manuel da Maia os melhoramentos do hospital (que ficou com a configuração que hoje lhe conhecemos), a construção dos paços do concelho e os vários chafarizes das Caldas da Rainha. D. João V transforma a vila e cria com ela e os seus habitantes uma profunda relação de afecto.
Ele chegou a financiar várias obras importantes, não só nas Caldas mas também em Óbidos. É ele que custeia as obras da Igreja de Nosso Senhor da Pedra, local onde o rei gostava de rezar.
GC – Quais são as quintas que serão mencionadas na obra e quais são as histórias que nelas decorrerão?
CQ – Uma das histórias vai passar-se na Quinta da Foz – que pertencia a D. Filipe de Alarcão Mascarenhas de Sotomaior, que foi governador e Capitão General da ilha da Madeira. Nesta quinta vai alojar-se D. Manuel, um infante estranhamente desconhecido em Portugal, irmão do rei e que, contra a sua vontade, foge e alista-se no exército do príncipe Eugénio de Sabóia e do Sacro Império e luta nas batalhas contra o crescente islâmico. Tem imensos sucessos militares e viaja por todas as cortes europeias quando a paz regressa. É uma grande figura que em Portugal tem pouco reconhecimento.
Há uma segunda história na Quinta de Bernardo Freire (mais tarde de Faustino da Gama e que é também conhecida como Quinta das Janelas ou simplesmente das Gaeiras) e que vai albergar o infante D. Francisco que vai falecer naquele Verão de 1742, vítima de uma congestão. Era um homem cruel que se divertia fazendo pontaria aos marujos que no Tejo lhe acenavam dos barcos.
É ainda numa quinta em Alfeizerão – que mais tarde pertencerá a Vitorino Fróis – que ficam albergados três filhos ilegítimos do rei. É Frei Gaspar da Encarnação que toma conta destas crianças e que pressiona o rei para que estas crianças sejam reconhecidas. São filhos de freiras do Convento de Odivelas e serão reconhecidos (apenas os filhos rapazes) a 6 de Agosto de 1742. D. João V é compelido a reconhecer estes filhos visto que é um homem atormentado e é algo que vai perturbar a Rainha D. Maria Ana. É algo inevitável.
GC – Que personagens escolheu para ser narradores do livro?
CQ – Os narradores serão Pedro Fontes, natural das Águas Santas, mas que viveu parte da sua infância na Foz do Arelho. Ele entra ao serviço de D. Manuel e com ele vai combater e viajar pela Europa. Ele é um guerreiro, tem uma admiração imensa pelo infante D. Manuel e regressa às Caldas em 1742, de onde tinha saído há muitos anos.
A outra narradora é Sara, uma personagem inspirada numa pessoa que existiu – D. Maria Rita de Portugal, nascida do relacionamento do rei com Dona Luísa Clara de Portugal, conhecida na corte como “a Flor da Murta” dada a sua beleza. Por ser mulher, D. João V recusa reconhecê-la.
De acordo com a História, a filha do monarca vive e morre aprisionada no Convento de Santos. Só que eu decidi colocar esta personagem nas Caldas, na Rua Direita, onde a própria possui uma olaria, onde cria imagens a partir do barro. Esta personagem Sara vive esperando uma palavra de apreço do pai que não acontece, mas ainda assim usa uma valiosa jóia ao pescoço que tem a efígie do rei, orgulhosa da sua origem.
Sara e Pedro vão apaixonar-se e para mim era importante que os leitores se apercebessem da dimensão poética na relação que se estabelece entre os dois. Espero que as pessoas sintam essa atmosfera intimista entre o par, pois há uma grande paixão e também uma grande cumplicidade entre ambos.
GC – Há outras histórias que se vão cruzar ao longo da narrativa, algumas com referência a factos da vida nacional…
CQ – Sim, há outras histórias que se cruzam, uma delas está relacionada com o V Império, que é algo que está muito presente na nossa cultura e na nossa tradição e que começa com uma profecia do profeta Daniel. Depois dos babilónios, medos, persas e dos gregos haverá um quinto Império que jamais será destruído. Este seria Portugal e este mito enraíza-se profundamente na nossa tradição e há grandes figuras que defendem a sua concretização desde o Padre António Vieira até Fernando Pessoa.
Há uma personagem no livro, Pedro de Rates Henequim, que vem do Brasil para oferecer ao Infante D. Manuel a coroa do Brasil e a chefia do V Império. Este é um facto histórico documentado. Mas como D. Manuel, o irmão guerreiro do rei, hesita em recusar de imediato, esta atitude pode ser considerada como um crime de lesa-majestade. Quando se descobre a intenção de Pedro de Rates Henequim, este é entregue à Inquisição e morre, em 1744 em auto de fé, uma prática, aliás, que agradava a D. João V.
GC – Nesta obra há a menção à água e ao barro, elementos que são caros à própria localidade. Há mais referências desse género que tenham a ver com as Caldas ou com a região?
CQ – Sim, de facto referem-se a água e o barro, elementos que fazem parte do ADN da localidade, da génese da própria vila. Também surge a referência à água benta em várias situações.
No livro há uma referência à louça fálica pois como ninguém pode afirmar com grande rigor quando é que esta surgiu, tomei a liberdade poética de relacionar esta tradição com D. João V. As tradições fálicas estão associadas a uma certa espiritualidade, à procriação, à fertilidade, mas nas Caldas esta tradição possui um carácter de ousadia lúdica.
Ao longo deste livro, que possui um grande suporte de investigação histórica, é fácil perceber quando estamos no domínio da ficção e da fantasia e quando estamos no domínio da História.
GC – Consegue conciliar a sua vida profissional de juiz desembargado com a de autor?
CQ – Não é fácil pois agora trabalho no Tribunal da Relação do Porto, o que se traduz numa vida muito complicada. Por isso, o projecto do livro foi desenvolvido entre acórdãos. Tenho o apoio da minha família, da minha mulher e filhos, que me apoiam e perdoam o tempo que lhes roubo para a investigação em locais como, por exemplo, a Biblioteca Nacional, onde fiz várias consultas para “A Redenção das Águas”. O meu filho Pedro é também o meu primeiro revisor e minha filha Inês auxilia-me com o trabalho gráfico. Tive uma grande preocupação com o rigor histórico, tarefa para a qual também tive a ajuda do editor, João Paulo Cotrim e ainda assim detectámos alguns anacronismos. Escrevi, a certa altura, as palavras “tertúlia” e “insanidade” e naquela época as duas palavras ainda existiam.
Escrevo todos os dias peças jurídicas e para já ainda não me libertei desta obra. Quero continuar a dedicar-me à escrita, mas só mais tarde, depois da apresentação deste livro. Acho, por exemplo, muito interessante o facto da Rainha D. Leonor ter sido acusada de ter envenenado o D. João II. Há na história desta Rainha muitas zonas nebulosas… Vamos ver, ainda não está nada decidido….
Marionetas na apresentação da Redenção das Águas
“A Redenção das Águas – As peregrinações de D. João V à Vila das Caldas” será apresentado no domingo, pelas 16h30, no CCC.
Na sessão de apresentação vão estar presentes com o autor, o editor João Paulo Cotrim, a vereadora Maria da Conceição Pereira, a livreira Isabel Castanheira e o professor José Carlos de Almeida. Após a apresentação da obra será representada o espectáculo “A ver navios no reinado de D. João VI e Carlota Joaquina” pelo grupo SA Marionetas, de Alcobaça. N.N.































