“Cartas de Damasco” é uma reflexão sobre o conflito na Síria. Sobre o dia-a-dia de uma jovem escritora que vive em Damasco: chama-se Leen Rihawi e é real. É neste testemunho que Ana Lázaro se inspira para escrever uma peça que aborda muito mais do que o tema da guerra.
Já pensou, por exemplo, que as publicações e likes que coloca no seu Facebook, podem ser considerados “crimes” em países sem liberdade? Estas e outras questões surgem em “Cartas de Damasco”, um espectáculo interpretado por Ana Sofia Paiva, apresentado no CCC no passado dia 18.
Ana não sabia que era possível duas pessoas serem amigas sem nunca se terem visto pessoalmente. Até ter conhecido Leen na nuvem da Internet e com ela ter trocado as primeiras mensagens. “Afinal, o que é um amigo? Não são pessoas a quem confiamos as nossas palavras?”, questionava-se. Nesta lógica, ela e Leen eram amigas, pois partilhavam histórias e sentimentos através de e-mails. Mais: eram duas amigas cuja ligação ficaria gravada para sempre na “cloud” – esse espaço da Internet que guarda toda a nossa informação (documentos, fotografias, mensagens).
A amizade de Ana e Leen é contada na voz de Ana Sofia Paiva, a actriz que desempenha nesta peça a personagem de contadora de estórias. Mais do que um monólogo, o espectáculo é pautado também por vários momentos musicais (alguns deles ao vivo, pela guitarra de Vasco Ribeiro) e projecções em vídeo. Uma combinação a três que enche os olhos do espectador, que chega mesmo a ser convidado a participar através da leitura de algumas cartas que foram trocadas entre as duas jovens. Tudo isto acontece num ambiente de grande proximidade entre o público e um cenário que chama a atenção pelos imensos aviões de papel que preenchem o chão e o tecto.
Ana vive em Lisboa. Leen em Damasco. Sabe-se que Leen estuda engenharia, embora ser jornalista seja o seu verdadeiro sonho. Só que ser jornalista num país em guerra e sem liberdade é perigoso, por isso os pais obrigaram-na a desistir dessa ideia. Enquanto Ana passa muito tempo na rua, Leen quase nunca sai de casa. Às 19h00, todos os estabelecimentos já estão fechados em Damasco. “Quase só saio para ir às aulas na faculdade e no Inverno tenho que sair com três casacos vestidos porque não temos aquecimento”, conta a síria, dando conta que só tem oito horas de electricidade por dia e, por isso, nem sempre pode estar conectada à Internet para responder a Ana.
“AS BOMBAS DEIXAM O SILÊNCIO NAS CIDADES”
Embora estivessem separadas por mais de 5.500 quilómetros e vivessem em dois continentes diferentes, Ana e Leen sentiam que não eram pessoas assim tão diferentes. As brincadeiras de infância tinham sido praticamente as mesmas e ambas gostavam de gatos e de neve. Eram as circunstâncias que as afastavam.
Leen falava muito sobre o seu passado, pouco sobre o seu dia-a-dia actual. Mas um dia contou a Ana que estavam a cair bombas na zona onde morava. “As bombas deixam um silêncio nas cidades, mas não é como o silêncio da neve. Não é um silêncio de algodão, é um silêncio de sombras”, dizia. E noutra vez em que Ana lhe disse que em Lisboa as pessoas pareciam sempre mal encaradas, como se fossem de pedra, Leen respondeu-lhe que em Damasco era diferente: “aqui as pessoas são de areia, aparecem e desaparecem com o vento”.
Leen também não tinha Facebook e explicou à sua amiga porquê. É que no seu país já tinha havido gente a desaparecer depois de ter feito uma publicação ou ter posto um like nas redes sociais. “Eu estou farta de tomar partidos, por isso apaguei a minha conta”, contava.
A troca de e-mails ainda durou algum tempo, mas houve um dia em que Leen deixou de responder. Ana questionou-se: “será que aqueles e-mails tinham mais significado do que aquelas palavras?”. Com muitas perguntas, mas sem nenhuma resposta, restou a Ana a esperança de encontrar-se um dia com Leen na Antártida, o lugar onde as duas amigas tinham combinado ver-se pela primeira vez.
Questionada pela Gazeta das Caldas, a autora Ana Lázaro explicou que a Antártida foi o local que encontrou para simbolizar “o espaço em branco, onde aquelas jovens pudessem escrever um futuro novo sem as agruras da guerra”. Isto porque a Antártida é o único continente do mundo no qual os países se uniram apenas para fazer exploração científica.
“LEEN ERA POUCO DIRECTA NAQUILO QUE DIZIA”
Ana Lázaro contou também que o primeiro contacto com Leen Rihawi não aconteceu pela Internet, mas sim em Barcelona, há cinco anos, num encontro de escritores.
“Uns dias depois, começaram a chegar muitas notícias que davam conta da intensificação da guerra na Síria e eu escrevi à Leen, perguntei-lhe se estava bem e se aceitava escrever-me regularmente para depois fazer uma peça inspirada no seu testemunho”, disse. A síria aceitou, só que surpreendeu Ana Lázaro pois foi sempre pouco directa nas descrições que lhe enviou: “era muito metafórica e poética naquilo que dizia, tanto que a construção do espectáculo oscilou muito porque perdi bastante tempo a descodificar aquelas mensagens”.
“Cartas de Damasco” inclui, por isso, bastantes partes de ficção, “até para protecção da própria Leen”, acrescentou Ana Lázaro. A peça subirá agora ao palco do auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Lisboa, no próximo dia 28 de Abril.
Ana Lázaro é natural de Leiria, licenciada em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Trabalha como actriz em teatro e televisão, em paralelo com a sua actividade de dramaturga e encenadora. Foi distinguida em 2013 com o prémio literário “Sea of Words” (Barcelona), em 2014 com o prémio FNAC Novos Talentos da Literatura, e o ano passado com o prémio literário Maria Rosa Colaço, dedicado à literatura infantil, com a obra “Pescadores de nuvens”.































