Histórias da guerra em África contadas na primeira pessoa nas Gaeiras

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Notícias das Caldas Cerca de 40 homens das Gaeiras combateram em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, entre os anos 1961 e 1975. Alguns deles partilharam as suas histórias da Guerra Colonial no passado dia 7 de Abril, nas Gaeiras, no âmbito da exposição “Ultramar – Dever ou Obrigação?”, organizada pelo Jovens Voluntários de Gaeiras (JVG) .
Durante mais de duas horas ouviram-se relatos de quem esteve no confronto, sofreu sequelas e perdeu amigos,  mas conseguiu sobreviver a uma guerra que no total originou cerca de 8300 mortos e 140 mil traumatizados.

José Pereira regressou da Guiné para a sua terra natal, Gaeiras, a 15 de Agosto de 1965. Era dia de feira nas Caldas e o jovem militar quis ir conviver e reencontrar velhos amigos. No entanto, quando se aproximou da parte dos divertimentos e ouviu tiros, atirou-se imediatamente para o chão obedecendo ao seu instinto de resposta a uma emboscada. Traumas de guerra, como o deste ex-combatente, foram partilhados por outros homens, que viveram a sua juventude na guerra em África e trouxeram marcas para toda a vida.

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António Freitas, também natural das Gaeiras, esteve na Guiné entre 1967 e 1969 e garante que regressou a ver a vida de outra forma. Com apenas 22 anos e com uma filha bebé, embarcou num cargueiro carregado de munições. Daqueles tempos não guarda boas recordações e pediu aos jovens que evitem todas as situações que possam potenciar a guerra.
O ex-combatente diz ser “inaceitável” que os sucessivos governos não tenham ainda trasladado os corpos dos seus camaradas que lá caíram, muitos dos quais estão identificados e localizados.
“Quem os levou [o Estado português] tem a obrigação de os trazer”, disse. António Freitas recordou ainda que na altura muitos portugueses, graças à censura que havia no regime, não sabiam a realidade do que se passava em África e destacou o movimento dos Capitães, como sendo uma peça fundamental para a ruptura com a politica colonial do regime de Salazar.
A combater na Guiné na mesma altura que António Freitas, esteve Diamantino Ferreira, que recordou com emoção os 21 meses que lá passou. Destacou a importância dos encontros de ex-combatentes que se fazem por todo o país e considera que o poder político e a sociedade nunca lhes prestou a devida homenagem.
O gaeirense andou no mato e teve que “picar” estradas infestadas de minas disse, recordando que muitos dos seus camaradas regressaram a Portugal sem pernas ou braços, outros cegos e, muitos deles continuam nos hospitais.
À tensão do conflito juntavam-se as difíceis condições de subsistência e a falta de notícias de casa. “Tinha que lutar contra os mosquitos e a falta de entrega do correio, que era a coisa mais importante para nós”, disse, recordando que, por vezes, quando os aviões não podiam aterrar devido às más condições da pista, mandavam do ar os sacos com as cartas, para assim terem notícias da sua terra.
Eduardo Silva foi mobilizado para Moçambique quando pensava que já não teria que partir para o ultramar. Acabou por ir comandar um pelotão de africanos, em que a maioria não sabia falar português obrigando-o a aprender os seus dialectos.  Recorda que os jovens não estavam preparados para ir para a guerra e ressalva que os conflitos que viveram em Moçambique e Angola não eram comparáveis aos da Guiné, onde a violência foi maior.
Mas o actual presidente da Junta de Freguesia das Gaeiras também encontrou alguns aspectos positivos nesta mobilização para África pois isso permitiu aos jovens conhecer novas terras. No navio Vera Cruz, um dos muitos que na altura fazia a rota das colónias, percorreu toda a costa africana. Foi também na tropa que muitos jovens portugueses de então aprenderam a usar a faca e o garfo e hábitos de higiene.

UMA JUVENTUDE ANIQUILADA

Na segunda fase da sua missão foi para o serviço de Saúde, em Nampula, onde fazia o registo das amputações. “Fez-me abrir muito os olhos e ver que se estava a aniquilar ali uma juventude”, contou, acrescentando que houve muitos soldados que não chegaram a conhecer os seus filhos e outros perderam os seus irmãos.
Também presente no colóquio, Natália Silva deu o testemunho que quem viveu a guerra sem sair do país, pois namorava com Eduardo Silva quando este foi mobilizado. “Foram dois anos muito duros”, recordou, acrescentando que as namoradas faziam uma vida quase de luto, em que não frequentavam bailes nem festas.
Também o correio era esperado, diariamente, com impaciência e, na maior parte dos casos, a chegada sã e salva dos soldados a casa era comemorada com uma peregrinação a pé a Fátima.
Nas Gaeira  também era costume que os militares que regressavam a casa assegurassem a festa da padroeira da terra, Nossa Senhora da Ajuda.
Nos antigos Armazéns do Vinho podem ser vistas muitas imagens e objectos pessoais dos ex-combatentes, que integram a exposição Ultramar – Dever ou Obrigação?”. Esta mostra está patente até ao dia 27 de Abril. Pode ser visitada às sextas, sábados e domingos, das 10h00 às 22h00. Às sextas-feiras, a mostra está disponível para possíveis visitas de escolas.

Desenvolver a cooperação e a solidariedade

O Grupo de Jovens Gaeirenses (JVG) assinalou no passado dia 4 de Abril o seu primeiro aniversário. O presidente da associação, Ricardo Duque, destacou que esta tem procurado demarcar-se pelo seu “espírito de união, força, responsabilidade, cooperação e dinamização de uma terra que tem um capital jovem riquíssimo e que tem que ser aproveitado”.
Entre os seus objectivos estão o desenvolvimento da cooperação e solidariedade, assente em iniciativas relativas à problemática da juventude, nas suas vertentes de intervenção cívica, cultural e recreativa, desportiva, social e ambiental.
No último ano, entre outras actividades, os jovens organizaram os santos populares, a festa em honra de Nossa Senhora da Ajuda, um workshop sobre “maternidade e vinculação” e participaram na semana de voluntariado das escolas de Óbidos.
Ricardo Duque destacou o apoio da Junta de Freguesia das Gaeiras, assim como de diversos cidadãos e entidades, que colaboraram para o desenvolvimento do grupo, e realçou que as associações devem funcionar, cada vez mais, numa lógica de cooperação.

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