“Guardas de passagem de nível”, assim se intitula o livro de Carlos Cipriano, recentemente editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Este dá a conhecer a vida de mulheres que passam longas horas de vigília à beira da linha para garantir a segurança de comboios, carros e pessoas. É em homenagem a estas profissionais esquecidas, hoje em vias de extinção, que o autor escreveu esta obra. Gazeta das Caldas publica ainda um dos textos desta obra designada “A última guarda da linha do Oeste”
“Na maior parte das linhas em Portugal, até aos anos noventa, a segurança das circulações ferroviárias dependia unicamente de meios humanos”, conta o autor, professor, jornalista e director-adjunto da Gazeta das Caldas. E é sobre a vida das ferroviárias que cumpriram turnos de 12 e até de 24 horas de vigília aos comboios que se ocupa este livro que reúne textos com testemunhos destas profissionais que detinham o cargo mais baixo na hierarquia ferroviária. Aguardavam a passagem dos comboios muitas vezes em pequenos abrigos, sem água, luz ou casa de banho à beira da via férrea. Com as suas bandeiras ou lanternas, a elas cabia a tarefa de as erguer à passagem do comboio, dando assim o sinal de que a composição podia passar sem perigos. Pelas guardas, “os monstros de ferro passavam velozes levando passageiros que nem sonhavam que a sua segurança estava nas mãos daquelas senhoras”, conta o autor a quem estas testemunharam a dureza da tarefa e de como lidavam com as diferenças de ritmo quando garantiam a segurança das passagens de nível onde o tráfego dos comboios era intenso e como contrastava com o de locais mais isolados, com menos circulação, onde permaneciam isoladas durante longas horas.
Estas senhoras, hoje quase todas entre os 50 e os 60 anos, começavam como substitutas para depois passarem a guardas efectivas no cargo. Muitas guardas contaram ao autor como evitaram tragédias e como lidaram com situações de stress.
Filho de ferroviário, o autor traça um retrato pormenorizado do serviço, da farda e dos equipamentos disponibilizados às guardas de passagem de nível, assim como os regulamentos e procedimentos destes profissionais, sempre que uma guarda assinalava alguma situação anómala.
Carlos Cipriano explica também que, apesar desta ser uma profissão em extinção devido à automatização e supressão das passagens de nível, a Refer se orgulha de não ter procedido a despedimentos, tendo proposto às funcionárias reformas antecipadas, rescisões voluntárias e reintegração destas trabalhadoras noutras funções. Desta forma algumas antigas guardas são agora contínuas, empregadas de limpeza, telefonistas, ou administrativas. Todas se orgulham de ter sido guardas e quem quiser conhecer um pouco das suas vidas, poderá fazê-lo lendo estes “Retratos da Fundação” traçados com rigor ferroviário.
“Guardas de passagem de nível” encontra-se à venda nas livrarias e também nos supermercados Pingo Doce. Custa 3,50 euros.
A última guarda da linha do Oeste

O inter-regional para Coimbra passou com 58 minutos de atraso.
Na passagem de nível do Campo, ao Km 106,201 da linha do Oeste, nos arredores das Caldas da Rainha, só um olhar mais atento verificou que a frente da automotora estava ligeiramente raspada pelo acidente.
O choque acontecera uma hora e meia antes, em Dois Portos
(Torres Vedras). Um veículo ligeiro não parara na passagem de nível automatizada daquela localidade, quebrara a barreira, e foi colhido pela composição. No carro seguiam os avós e um neto de oito anos. A criança morrera. A avó ficara em estado grave. O avô, que conduzia o carro, sobrevivera sem grandes ferimentos.
Por isso, neste dia, na linha do Oeste, o serviço está alterado.
Como é uma linha de via única, basta um comboio atrasar-se para que essa mesma circunstância se repercuta em todos os outros.
Gracinda Ribeiro Costa Rosa Nunes, 59 anos, está de serviço na única passagem de nível com guarda de toda a linha do Oeste.
É uma sobrevivente, pois foi para ali em 1990, numa altura em que tinha dezenas de colegas. Agora é a única.
A passagem de nível tem um horário quase de expediente.
Só está a funcionar das sete da manhã às 23 horas. Durante a noite e aos fins-de-semana está fechada e durante esses períodos os condutores terão que fazer um desvio e passar a linha num viaduto que está situado a 500 metros dali.
Ainda assim, esta estrada serve a localidade do Campo e um conjunto de aldeias e casais dispersos que constitui uma área denominada por Serra do Bouro. Prova de que é muito utilizada são os 11 carros que se juntaram de ambos os lados das barreiras durante os cinco minutos que estas estiveram fechadas aguardando a passagem do comboio.
A notícia do acidente correu ao longo da linha entre os ferroviários, saltando de estação em estação. Para estes profissionais não são novidades de todo invulgares, pois, de vez em quando, desrespeitando a sinalização, há um condutor que insiste em atravessar uma passagem de nível. Com consequências fatais.
Em 2014 a Refer estimava que os acidentes em passagens de nível cuja responsabilidade atribuída à falta de cuidado dos condutores representavam 98% do total.
Gracinda Rosa diz que, felizmente, nunca assistiu a um acidente, nunca precisou de usar petardos, nunca apanhou um grande susto. Trinta e cinco anos a tomar conta de passagens de nível, a abrir e fechar cancelas, a zelar pela segurança de peões e condutores, com a convicção de que basta cumprir os regulamentos, não falhar nunca e o serviço decorrerá sem problemas.
O único acidente – e grave – em que se viu envolvida foi com ela própria. Nas passagens de nível há barreiras que se levantam e se baixam para obstruir a estrada, mas há também cancelas que correm sobre calhas ao longo da passagem de nível para fechar a estrada e impedir o trânsito rodoviário. São construídas em ferro, pesadas, obrigando a algum esforço para as fazer correr.
Numa manhã gelada de Inverno, em S. Mamede (Bombarral), Gracinda Rosa estava quase a terminar o turno da noite quando, ao tentar fechar a cancela, esta “descarrila” e lhe cai em cima. A guarda de passagem de nível fractura a coluna. E demorará três anos a recuperar até ter alta e voltar novamente para a beira da linha.
A guarda Rosa, como é conhecida a última sobrevivente da linha do Oeste, veio da Lamarosa, onde nasceu há 59 anos.
A Lamarosa é uma bifurcação ferroviária na linha do Norte, de onde parte o ramal de Tomar. Gracinda vivia perto da linha.
Tinha a 4.ª classe e trabalhava no campo, fazia limpezas, tomava conta de crianças.
“Não pedi a ninguém. Havia uma passagem de nível perto da minha casa e o marido da guarda foi um dia aos meus pais perguntar-lhes se eu queria ir para lá trabalhar.”
Aos 24 anos Gracinda Rosa torna-se guarda substituta.
O primeiro posto de trabalho foi a PN 113, perto da Lamarosa, num atravessamento rural. Habituou-se ao ruído constante das campainhas que anunciavam a chegada dos comboios e, diligentemente, fechava e abria o atravessamento ao trânsito.
“Eram turnos de 24 horas. Durante o dia, abria e fechava as cancelas, mas à noite a passagem de nível fechava e só se viesse alguém é que eu a abria”.
As noites mal dormidas no abrigo, porém, foram-lhe poupadas.
A passagem de nível tinha uma guarda titular residente que, apiedando-se da jovem substituta, a mandava para casa, assegurando ela o período da noite, já que pouco ou nenhum era o tráfego que ali passava depois do pôr-do-sol.
Durante dez anos Gracinda Rosa foi guarda substituta. Sempre nas passagens de nível em torno da Lamarosa, tendo muitas vezes que percorrer alguns quilómetros pela beira da linha para pegar ao serviço e para regressar a casa. Acompanhava-a o farnel com comida e a garrafa de água, porque alguns dos postos de trabalho onde cumpria turnos de 12 ou 24 horas não tinham sequer um poço. Luz eléctrica, então, era um luxo. À noite, Gracinda tinha a companhia da lanterna com que fazia sinal aos comboios. De vez em quando, o farol de uma locomotiva varria a escuridão, o comboio passava veloz, e a ferroviária ficava a ver o farol da cauda, a luzinha vermelha a esvair-se na noite. Depois, novamente as trevas.
Dez anos demorou a entrar nos quadros da CP e, mesmo assim, só por ordem do tribunal. “Em 1990 é que entrei para o quadro. Foi o sindicato que tratou de tudo no tribunal. Foi fácil. Entrei para efectiva e ainda recebi uma indemnização”.
Mas a empresa exigiu-lhe uma contrapartida pesada. Gracinda Rosa diz que foi propositado, que foi “castigo” por ter recorrido ao tribunal. A partir de agora acabavam-se os serviços perto da Lamarosa e da família, e a novel guarda efectiva da CP teria de escolher entre o ramal de Cáceres – que atravessava uma zona deserta nos confins do Alto Alentejo – ou a linha do Oeste.
Nesta última havia uma vaga na estação de S. Mamede, mas o turno era sempre nocturno.
Nessa estação, a guarda da passagem de nível era assegurada durante o dia pelos próprios ferroviários que ali estavam de serviço.
Mas à noite a estação de S. Mamede entrava em eclipse, isto é, ficava desguarnecida de pessoal e funcionava como se fosse um apeadeiro.
Nesse período a passagem de nível que dava acesso à Columbeira, à Roliça, ao Pó e aos casais em redor destas aldeias ficava entregue aos cuidados de Gracinda que ali cumpria turnos de 12 horas.
Com 34 anos, sem conhecer absolutamente ninguém na zona, Gracinda Rosa diz que chorou muitas vezes. “Foi muito complicado.
Sofri muito. Primeiro porque nunca tinha saído da casa dos meus pais. E depois porque o serviço era muito diferente. Eu chorava noite e dia”.
Habituada às campainhas e ao bulício de comboios na linha do Norte, a guarda estranha o sistema da linha do Oeste. Ali recebia os telefonemas dos chefes de estação do Bombarral de um lado, e de S. Mamede, Óbidos ou Caldas da Rainha do outro, consoante o tamanho do cantão. E os comboios eram raros. Um mercadorias pouco depois da meia-noite e as automotoras da madrugada que vinham das Caldas para Lisboa.
“Para me consolar até diziam que era como se eu estivesse reformada, que aquilo dava pouco trabalho. Ah, mas eu estava tão sozinha…”.
Como a caseta não tinha condições para viver, Gracinda aluga uma casa em S. Mamede. Trabalha de noite e dorme de dia. Quando pode, nas folgas, mete-se no comboio para o Rossio, atravessa a
Baixa em passo apressado para Santa Apolónia e apanha um comboio para a sua querida Lamarosa, para ver a família e o namorado.
Vive assim durante dois anos. Até que um dia a cancela lhe cai em cima.
Três anos depois, quando tem alta, a sua PN havia sido automatizada e o seu posto de trabalho extinto. Felizmente, para ela e para as colegas, passagens de nível não faltam. Só num troço de seis quilómetros, entre Bombarral e S. Mamede, havia cinco.
Gracinda Rosa vai para o Casal Fialho, ao Km 93, algumas centenas de metros mais abaixo. Mas só lá fica uns meses porque entretanto esta PN desaparece com a construção de uma estrada que desvia o trânsito para outra passagem.
Sina destas mulheres a de andarem a “fugir” das PN que encerram ou são automatizadas. Saltam de umas para as outras deixando para trás os seus antigos postos de trabalho.
Agora, ao Km 92 da linha do Oeste, entre Paul e S. Mamede
(no concelho do Bombarral), Gracinda Rosa reparte com duas colegas uma caseta onde não há água nem luz. A passagem de nível tem dois turnos de 12 horas, mas são necessárias três mulheres porque há folgas, férias e licenças a assegurar.
“Aquilo de noite era uma escuridão total. Não se via absolutamente nada. Só tínhamos a lanterna. A casa não tinha condições e o telefone era cá fora. Fizesse chuva ou frio, vínhamos cá fora atender o telefone, esperávamos uns minutos e depois voltávamos a sair para fechar a cancela”.
As três mulheres rendem-se nos turnos. Algumas dormem lá quando terminam o trabalho a desoras, mas Gracinda combina com um táxi ir buscá-la sempre que sai à meia-noite a fim de poder dormir na sua casa em S. Mamede. Já para ir para o trabalho vai a pé pela borda da linha.
“Levava comida e água de casa. E uma vez o meu irmão levou-me um gerador para podermos ter luz na passagem de nível”.
A mulher, que aos 34 anos veio sozinha da Lamarosa e chorava a cada dia com saudades da família, acabou por ficar a viver 20 anos em S. Mamede. Integrou-se, claro, na grande família ferroviária. E assistiu ao encerramento de todas as passagens de nível ao longo da linha do Oeste. As colegas foram-se reformando, transferidas para outras linhas, ou requalificadas para serviços administrativos ou de limpezas. Ela seria a única a manter- se na profissão.
A última guarda de passagem de nível da linha do Oeste está hoje no lugar do Campo, nas Caldas da Rainha, para onde se mudou. Desta vez comprou casa e é aqui que vive com o marido, num bairro novo, perto do seu local de trabalho.
A caseta é velha, como o são todas as que ainda subsistem ao longo da rede ferroviária nacional. As portas e janelas estão apodrecidas, o soalho de madeira está nas últimas, as paredes têm rachas e ali já não se vê pintura há anos. Tudo faz parte de um passado que já não volta. Gracinda ainda ali dormiu antes de ter comprado casa. Também lá está a velha cama de ferro da CP e um colchão. A passagem de nível tem dois turnos diurnos que são partilhados entre ela e um manobrador da estação das Caldas.
“Dentro do que não presta, isto foi o melhor que me apareceu”, comenta Gracinda Rosa.
Num dia normal, entre as 7h00 e as 15h00 passam por ali oito comboios. Se estiver no turno da tarde, entre as 15h00 e as 23h00 serão só sete. Isto agora, no Verão, porque há mais quatro comboios sazonais para servir a praia de S. Martinho do Porto.
No Inverno passam apenas 11 comboios por dia – os regionais para Leiria e os inter-regionais para Coimbra.
Gracinda nunca teve necessidade de pôr petardos na linha nem de fazer parar um comboio. E não tem histórias para além das habituais incompreensões das pessoas por cuja segurança zela.
“Ainda na semana passada apareceu-me aí uma estúpida de uma senhora… Eu devia ter fechado a barreira durante dez minutos e mesmo assim só fechei cinco minutos antes para não ficarem muitos carros à espera. E saiu a senhora do carro e pôs-se para aqui a mandar vir. Só não me chamou santa!”
Não responder é a postura utilizada pelas guardas de passagem de nível. Não ligar, ignorar, olhar para o lado e esperar que o comboio não demore.
Gracinda tem consciência de que a última PN guarnecida desta linha não durará muito tempo. Não sabe o que a espera até à reforma, mas parece desejá-la porque está um pouco desencantada com a profissão.
“O caminho-de-ferro já foi melhor, mais familiar, as pessoas foram saindo… O senhor Valdemar, o senhor Couceiro, o senhor
Velez, o senhor Fialho. Havia mais camaradagem entre os ferroviários, juntávamo-nos de manhã no bar ao pé da estação para tomar um cafezinho. Eram outros tempos”.
– Cento e seis?
– Sim.
– Comboio 6452 vai sair de S. Martinho do Porto à tabela.
– Entendido.
Gracinda toma nota do telefonema, que ocorre às 12 horas e 50 minutos, e desliga o telefone. O 6452 sairá de S. Martinho às 12 horas e 56 minutos. Passará na sua PN às 13 horas e 7 minutos.
Faz as contas e dentro de sete minutos baixa as barreiras. Ouve-se ao fundo o troar dos motores a diesel da automotora que se aproxima. E a mulher faz este gesto simples, o de erguer uma bandeira enrolada à sua passagem. Os passageiros mal notam, os carros parados na passagem de nível estão impacientes à espera de poderem seguir viagem. Mas com este gesto singelo a guarda Gracinda acaba de garantir que o quilómetro 106 da linha do Oeste se encontra em segurança.
In Guardas de passagem de nível
Autor: Carlos Cipriano
Colecção: Retratos da Fundação































