Em 2013 a Tertúlia celebraria o seu 50º aniversário

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Se a Tertúlia de Artes e Letras caldense ainda existisse, no passado dia 29 de Junho, teria festejado o seu 50º aniversário. O espaço que foi um pólo cultural arrojado era gerido por Vítor Sebastião e Carlos Silvério, que organizaram marcantes eventos culturais na cidade, durante apenas dois anos, na década de 60.
A tertúlia funcionou num primeiro andar da Rua das Montras (R. Almirante Cândido dos Reis em que, na altura, ainda circulava o trânsito automóvel), agora transformado num espaço comercial, mas que guarda muitas memórias daquele projecto cultural arrojado.
Gazeta das Caldas  há uma década dedicou-lhe um suplemento recordatório. Agora que completa meio século voltou a conversar com Vítor Sebastião que, com o falecido Carlos Silvério, realizou eventos culturais marcantes naquele período difícil, na década de 60. O investigador francês Michel Giacometti, o escritor Luís Sttau Monteiro, o maestro Vitorino d’Almeida, o compositor Lopes Graça, e os cantores Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira foram algumas das personalidades que passaram na tertúlia.  Além dos músicos, nas artes plásticas, por ali conviveram Ferreira da Silva, Bual, Júlio Pomar, Martins Correia, João Fragoso ou Júlio Resende com homens de letras como Bernardo Santareno, Luís Sttau Monteiro, Romeu Correia, David Mourão Ferreira, Luiz Pacheco, entre tantos outros.
Um frequentador habitual da tertúlia era o artista Ferreira da Silva, amigo dos responsáveis. Em nome da amizade, este autor acabou por fazer uma intervenção artística, um esgrafito na parede onde prestou homenagem a vários autores. Esta obra de arte foi preservada e ainda decora aquele 1º andar. “Passados 50 anos, constatamos que hoje não há nada de semelhante”, disse Vítor Sebastião, hoje ainda muito envolvido com várias entidades culturais caldenses.
O investigador Mário Tavares chegou a frequentar a Tertúlia Artes e Letras e colabora com um texto que assinala este especial aniversário.

N.N.


Tertúlia Artes e Letras – 50 anos

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Se fosse viva, a Tertúlia teria completado meio século no passado mês de Junho. Tantos anos quantos leva o falecimento de John Kennedy. Recordo-o, foi no Café Central, onde estava(mos) com Luís de Sttau Monteiro, folheando um exemplar de Felizmente há Luar! (de que ele se propunha falar-nos e discutir, naquela noite, na Tertúlia; explicando, em traços gerais, a linha da encenação que concebia, para a peça, que publicara dois anos antes), que ouvimos pelo rádio do Central a notícia do assassinato do Presidente dos EUA.
Felizmente Há Luar! baseia-se na tentativa frustrada de revolta liberal em 1817, encabeçada (?) pelo Gen. Gomes Freire de Andrade – contra a dominação inglesa –  recriando a sequência de acontecimentos históricos e sublinhando de forma politicamente empenhada e bem legível, a injustiça da repressão e das perseguições políticas, comuns, ao tempo, em Portugal. Esteve proibida até 1974 e foi pela primeira vez levada à cena em 1978, no Teatro Nacional de D. Maria II, com encenação do próprio Sttau Monteiro.
Dezenas de nomes célebres da cultura portuguesa, literatos, ensaístas, poetas, dramaturgos, vultos maiores da pintura e da escultura, de todas as Artes, em apenas dois anos e poucos meses – que foram os que restaram de vida ao Carlos Manuel -, tornaram aquele espaço um autêntico templo de Arte, um dos locais mais aprazíveis de que Caldas da Rainha alguma vez desfrutou. Na parede de fundo, da galeria  elevada do estabelecimento, Ferreira da Silva compôs, em baixo relevo, um painel de letras, que é, quanto a mim, uma das melhores obras da vasta produção do autor.
Foi há cinquenta anos que abriu as suas portas, ao público, num primeiro andar da Rua das Montras a Tertúlia Artes e Letras, de Silvério & Silva, Lda. Um estabelecimento diferente – não vendia tecidos, nem era alfaiataria, pastelaria ou loja de louça – vendia livros, discos, gravuras, peças de arte; “vendia” sonhos e convívio fraterno, e era mesmo uma novidade nas Caldas (e, porque não, no País).
A história pode contar-se, assim, simplesmente:
Era uma vez um jovem/adulto, de seu nome Carlos Manuel Fiandeiro Silvério, que sonhava, desde os 12 anos (disse-o ele) possuir uma grande livraria. Com essa intenção, fez regressar às Caldas os pais – o Sr. Silvério e a D. Alda, vindos de Abrantes, para abrir a primeira livraria da cidade – a Parnaso; se não contarmos com a quase livraria do Sr. Silva Santos (também ele um sonhador).
Mas, a Parnaso não correspondia, ainda, à ambição do Carlos Manuel. Foi então que, em 1963, com o apoio de seu pai, se associou ao Victor Manuel da Silva Sebastião (que alguma vez ambicionou ser violinista), também ele um jovem recém regressado de África, que concretizou o acariciado projeto – a abertura de uma grande livraria nas Caldas, a Tertúlia Artes e Letras.
Porém, para os representantes locais da ordem estabelecida, gente como esta, que pretendia abrir ao público um “negócio” diferente cá na terra, era de desconfiar. Tiveram os fundadores de passar pelo crivo das polícias, pelo Governo Civil, até que a necessária autorização fosse conseguida.
O êxito da Tertúlia foi, porém, demasiado breve; como foi demasiado breve e rápida a duração da vida do Carlos. O Carlos Manuel vivia demasiado depressa (quem não o conheceu não pode imaginar quanta energia existia naquele corpo franzino), e o coração (em 17 de Dezembro de 1965) não aguentou com uma existência em permanente estado de euforia. E pode perguntar-se: mas, porque não prosseguiu a Tertúlia, depois da morte do seu fundador? Muito naturalmente – porque o Carlos Manuel Fiandeiro Silvério era insubstituível. A sua mãe, a D. Alda, manteve durante anos o espaço preenchido – não de porta aberta, mas apenas como homenagem à memória do filho.
Sobre a reflexão de Séneca que inscreveu como divisa no logótipo da Tertúlia – Mas quem subiu jamais ao alto marchando pelo plano? -, o Carlos Manuel honrou exemplarmente tal proposição.
A Gazeta das Caldas publicou, há 10 anos, uma excelente separata, sobre este ambicioso projeto cultural/comercial, que bem merece ser revisitada.

Mário Tavares

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