
Os ex-presos políticos José Pedro Soares e Eduardo Pires deram o seu testemunho de como foi ser preso e torturado pela Pide. Algo que não deixou ninguém indiferente durante a apresentação do livro “No Limite da Dor: A Tortura nas Prisões da Pide” que teve lugar a 6 de Abril na Biblioteca.Na sessão, a jornalista Ana Aranha, co-autora da obra, afirmou que a liberdade também se deve aos ex-presos políticos. Eduardo Pires acha que é preciso divulgar esta parte da história contemporânea portuguesa apostando, por exemplo, em filmes que dêem a conhecer a luta contra o Estado Novo.
“Fui preso em 1971. Estava na tropa na Serra da Carregueira e até julguei que ia preso por ser um agitador lá no quartel”, disse José Pedro Soares, afirmando que afinal tinha sido denunciado. Era então um operário-tipógrafo, de 21 anos, em Vila Franca de Xira onde tinha actividade política contra o regime. Primeiro foi enviado para a António Maria Cardoso, onde ficava a sede da Pide e onde se tiravam as clássicas fotografias: de lado, de frente e de lado, novamente. Ali começava logo o interrogatório: “Então vieste cá parar? És contra a Pátria, a Igreja, o Governo, o nosso presidente e o Ultramar?”. Era assim que os agentes falavam sem se esquecer de questionar todos os presos se pertenciam ao Partido Comunista.
Em seguida José Pedro Soares foi levado para a prisão de Caxias, tendo ficado numa cela de isolamento. “As pessoas ficavam com o mínimo possível”, contou José Pedro Soares, que foi logo sujeito a seis dias e seis noites de interrogatório, submetido a torturas do sono e a muita violência. “Só que eu não tinha nada para dizer”, disse o convidado, que resistiu a todas as provocações, devido à preparação militar que possuía. “Fala ou não fala?”, gritavam os agentes ao prisioneiro, que acabou por fazer greve de fome em protesto pela forma como estava a ser tratado. Seguiram-se mais seis dias de tortura… Ao fim da quarta noite sem dormir, “quando as luzes até nos magoam”, mostraram-lhe fotografias de pessoas (com o intuito de José Pedro Soares as denunciar) e, claro, “eu nunca conhecia ninguém”.
A sessão mais dura passou-se em Caxias entre os dias 6 a 27 de Agosto. José Pedro Soares esteve sempre na sala de interrogatório, numa sessão de tortura contínua. “Ao fim da segunda noite precisei de assistência médica e ao sétimo dia a minha urina era sangue”, disse o ex-preso, que ainda acrescentou que os Pides tinham um pequeno rádio, o que lhe permitiu ter ouvido o início e o fim da Volta a Portugal.
Ao oitavo dia deixaram-no dormir uma noite num colchão, colocado no chão da sala de interrogatórios. Pior que a tortura física, era a psicológica: “nunca mais vai ver a sua mãe… A sua namorada vai deixá-lo. Quando sair daqui ninguém lhe dará trabalho”. Era com afirmações deste tipo que tentavam quebrar psicologicamente os presos. José Pedro Soares nunca cedeu. Quando o mandaram regressar à cela, teve que ir em braços.
Ninguém passou tantos dias sob tortura como este preso político. A sua luta e resistência era conhecida e a história do preso militar passava de boca em boca.
A sua família começou a mexer-se, escrevendo cartas para todo o lado. A mãe dirigiu-se a Marcelo Caetano queixando-se da situação do filho, sujeito Às mais cruéis sevícias. Fê-lo também para a Embaixada de França, tendo iniciado uma grande campanha internacional em volta da situação inaceitável em que se encontrava José Pedro Soares. Sá Carneiro e Francisco Balsemão, que pertenciam à ala liberal do parlmento, chegaram a visitar e a interceder pelo preso que sofreu as maiores torturas na Pide.
José Pedro Soares acabou por ser julgado em Tribunal Militar, tendo apanhado três anos e meio de cadeia. Depois de dois anos em Caxias, Zé Pedro, passou para a Fortaleza de Peniche, tendo sido libertado logo após o 25 de Abril.
“Não é fácil falar sobre a tortura… Alguns pereceram durante os interrogatórios…”, disse José Pedro Soares, referindo-se a um preso político da familia Pato, cujo coração não resistiu à violenta tortura dos agentes durante os interrogatórios.
O convidado ainda chamou a atenção para as problemáticas actuais. O ascenso da direita em vários países da Europa e a eleição de Trump são alguns factos que o deixam estupefacto, assim como a situação que se vive no Médio Oriente. Para o convidado, “temos que continuar a interessar-nos pelo política e pelo que se passa no mundo e na nossa vida”.
“Resisti com a história de Zé Pedro”
Eduardo Pires tinha 25 anos quando fui preso pela Pide. Era monitor na Lisnave e diz que aprendeu a resistir “ouvindo a história de Zé Pedro Soares”. O orador foi preso e contou que esteve quatro dias e cinco noites submetido à tortura do sono, sem no entanto ter sido espancado. A privação do sono causa alterações de percepção e Eduardo Pires contou como era dificil até ver o chão que se pisava.
O ex-preso político ainda partilhou como foi importante conseguir ver uma nesga da ponte sobre o Tejo da sua cela de Caxias, e de como aquela vista o ajudou a passar os dias mais dificeis.
Eduardo Pires descreveu como eram as sessões do “Pide bom” e “Pide mau”. O primeiro perguntava-lhe: “onde está a cadeira deste senhor?” e logo lhe trouxeram uma cadeira. “Então o senhor com uma vida de engenheiro à sua espera e está aqui a sacrificar-se, para quê?”. Eram variadas as tentativas de coação psicológica ao longo das sessões de tortura sem que tivessem funcionado com o orador, dado que, tal como José Pedro Soares, também Eduardo Pires nunca denunciou os seus companheiros. A dado momento conseguiu passar informações à sua irmã, explicando com detalhe como o fez, enganando o guarda. “Foi uma vitória para mim! Significava que nós podíamos vencer, mesmo dentro da prisão”, disse o convidado, acrescentando que nas prisões “ou vences ou és vencido, ou falas ou não falas”. Hoje em dia, na actual luta politica “não há tantas certezas”. É preciso uma atenção extraordinária a tudo e é necessário “continuar a lutar”.
Eduardo Pires deixou a sugestão de se apoiarem filmes feitos a partir de testemunhos de quem viveu estes momentos. “Precisamos de filmes sobre isto, com base nestes livros, para que a História e a memória não se esqueçam”, rematou.
Preservar a memória
Durante muito tempo, quem foi torturado pela Pide escolheu não falar. “Há pessoas que ficaram traumatizadas, muitas tiveram que receber tratamento psiquiátrico”, disse Ana Aranha, co-autora do livro “No Limite da Dor – A tortura nas prisões da Pide” que reúne os testemunhos de quem sofreu às mãos da Pide. O livro surgiu reunindo dezenas de depoimentos dados à jornalista para um programa de rádio que passou na Antena 1.
A obra, homónima, foi apresentado a 27 de Abril de 2014 no Forte de Peniche, no dia em que foram assinalados 40 anos da libertação dos presos políticos.
Segundo Ana Aranha, “No Limite da Dor” pretende assinalar os 40 anos de Abril e “em boa hora o fiz pois quatro anos depois ainda aqui estamos a debatê-lo”. A jornalista referiu que, para o programa de rádio, quis conversar com quem experienciou as situações limite relacionadas com a tortura da Pide. Fê-lo contando com a colaboração da historiadora Irene Pimentel, que é também autora do prefácio do livro.
A obra guarda testemunhos de quem resistiu até ao limite sem falar e dos que denunciaram sob tortura. “Sabia-se sobretudo no meio quem tinha traído e falava-se muito nisso no 25 de Abril”, contou Ana Aranha, explicando que passados 40 anos as pessoas refizeram as suas vidas. Muitos são professores universitários, juízes e engenheiros e “podiam não querer voltar a falar nisso”. Mas a maioria quis partilhar o que passou e fê-lo de forma “assumida e descomplexada”. Entre os depoimentos há entrevistados que afirmam que até então nunca tinham falado no assunto.
Ana Aranha considera que há o “dever de preservar a nossa memória”, tendo salientado que há outros países onde há ditaduras e polícia política.
Para a jornalista, “somos devedores destes ex-presos politicos que eram muito jovens e sabiam que ao ter actividade política contra o regime, era muito elevada a probabilidade de serem presos e torturados pela Pide”. Ainda assim, segundo a autora, não deixaram de lutar e de oferecer um sacrifício pessoal em nome de um ideal colectivo. “Não estavam a lutar por si próprios, mas sim por todos nós”, disse, acrescentando que tendo em conta a longevidade da ditadura portuguesa, terão sido milhares os que lutaram contra o regime. “É isso que devemos a estas pessoas. Devemos muito aos capitães de Abril, mas os presos políticos já lá estavam antes”, rematou a convidada.
A sessão nas Caldas só terminou à meia-noite e contou com a participação das 30 pessoas. Está integrada nas celebrações de Abril, promovidas pela União de Freguesia de N. Sra. Pópulo, Coto e S. Gregório e União de Freguesias de Sto. Onofre e Serra do Bouro.
Presa porque as enfermeiras não podiam casar
José Pedro Soares partilhou a história de uma mulher que foi presa durante a ditadura. Isaura esteve 294 dias em isolamento na Fortaleza de Peniche. E sofreu muito com isso, foi alvo de vários interrogatórios, dado que tinha encabeçado a luta pelo direito às enfermeiras a casar. Essa mulher foi julgada, o seu advogado foi preso em pleno Tribunal. Ela apanhou dois anos e nove meses de cadeia, mas esteve encarcerada durante quatro. Essa mulher, enfermeira, é esposa do também ex-preso político Borges Coelho, tendo casado quando ele estava na prisão.






























