“D. João II morreu há quatro anos. Na Sé de Silves exuma-se o cadáver com vista à trasladação para o Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Um sobressalto percorre os altos dignitários do reino: o corpo do monarca mantém-se incorrupto. Milagre!, grita-se nas ruas. Peçonha, sugere um conceituado físico, que procura no envenenamento uma explicação para o não apodrecimento do corpo sem vida, descrente da santidade de um monarca implacável com os inimigos, que não hesitou em apunhalar o irmão da rainha.
Desterrado no Mosteiro de Nossa Senhora da Misericórdia, na ilha da Berlenga, o narrador, que fez parte do corpo de ginetes, guarda pretoriana do rei, vive atormentado com a suspeita do envolvimento da rainha na morte solitária e precoce do soberano na única batalha por ele perdida: a da sua sucessão. Pela memória inquieta de quem viveu aqueles tempos, desfila a vida conturbada de um rei que ousou sonhar um reino para além do mar e das fronteiras daquele que herdou.”
Esta a sinopse do livro “Príncipe Perfeito – Rei Pelicano, Coruja e Falcão”, da autoria de Carlos Querido, que será amanhã apresentado no CCC pelo presidente do Tribunal de Contas, Oliveira Martins.
O evento está marcado para as 17h00.
Nas últimas semanas, Gazeta das Caldas levantou a ponta do véu deste romance histórico com a publicação de pequenos textos sobre as principais personagens do livro, escritas pelo autor, que é também colaborador do nosso jornal.
“A realidade histórica
é, por vezes, mais rica e surpreendente do que qualquer ficção”
GAZETA DAS CALDAS – O Príncipe Perfeito é uma nova abordagem à biografia de D. João II, com factos novos relevantes, ou é apenas uma história romanceada da sua figura?
CARLOS QUERIDO – Os factos que a História registou e que chegaram à posteridade são narrados por quem os viveu de perto: Rui de Pina, Garcia de Resende e Damião de Góis. João d’Óbidos, o narrador do romance, vive-os intensamente. Não há factos novos. Haverá sim, factos históricos vistos por um outro olhar.
GC – Qual a razão do seu interesse por D. João II?
CQ – D. João II é uma figura histórica imensa, que projecta a sua sombra sobre os reinados que se seguem. Antes dele há o momento alto do início da dinastia de Avis, com a afirmação da nacionalidade em Aljubarrota, e um momento de intriga e ignomínia, com a batalha de Alfarrobeira, onde morre e fica insepulto durante três dias o Infante das Sete Partidas, seu avô materno. Com ele e depois dele há o Mar e a afirmação universal de um povo de navegadores.
O mundo por descobrir é dividido em duas partes, partilhado por duas grandes potências navais e militares. À grandeza do rei corresponde a grandeza do reino. Por outro lado, esta figura shakespeariana, complexa e, por vezes, brutal, age sempre motivado por razões que o transcendiam. Diríamos hoje: razões de Estado. Daí que João d’Óbidos sinta necessidade de justificar os actos do seu rei, descrevendo-o assim: «Juiz e carrasco por imperativo da coroa e do reino, percorreu sem desvios o caminho ditado por razões que se sobrepunham aos afectos e aos laços familiares». Os historiadores que se debruçam sobre este rei acabam fascinados por ele, como acontece com a historiadora que melhor o conhece, Manuela Mendonça, e que afirma de forma convicta e fundamentada que foi nele que se inspirou Maquiavel na sua obra “O Príncipe”.
GC – Um romance histórico obriga a muita investigação. Por vezes, um simples parágrafo é fruto de muitas horas de pesquisa. Porquê a sua opção por este género de literatura quando lhe seria tão mais fácil escrever ficção pura?
CQ – Dizia Tom Clancy que a diferença entre a ficção e a realidade, é que esta última não tem que fazer sentido. A realidade histórica é, por vezes, mais rica e surpreendente do que qualquer ficção. Por outro lado, o facto histórico é uma excelente âncora para um romance. No entanto, este será o meu último romance histórico. Depois de “Praça da Fruta” e “A Redenção das Águas”, este, sendo o meu quarto livro, é o terceiro romance histórico. Há que experimentar outros caminhos.
GC – Existe alguma relação entre esta obra e a sua obra anterior “A Redenção das Águas”?
CQ – Poderá existir, mas nunca me questionei sobre ela, até ao dia em que a professora Iria Gonçalves, que me honra com a sua amizade e a quem pedi o favor duma leitura do manuscrito com vista à detecção de eventuais anacronismos, me disse que na sua opinião o narrador João d’Óbidos, no Mosteiro da Berlenga, para onde se retirou, procurava a sua redenção e a redenção do seu rei.
GC – E o rei redime-se no seu romance?
CQ – Um político célebre garantiu um dia que a História o iria absolver. Convém ter sempre em conta que não há certezas sobre o registo da história, que esta é escrita pelos vencedores, e que nunca é uma versão definitiva dos factos, já que as suas versões variam com os contextos sociais e económicos de cada época. Mas há personagens que transcendem o seu tempo e a quem a história não pode deixar de fazer justiça. D. João II é um deles. Visionário, não cabe no seu tempo nem na sua morte. Quando falece, os seus principais inimigos, como o cardeal Alpedrinha e a rainha Isabel, a Católica, expressam admiração e respeito. Ficou para a História a curiosa frase da rainha castelhana: «Morreu o Homem».




























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