Nas Caldas há um construtor de instrumentos musicais cujo talento é reconhecido além fronteiras. Chama-se Orlando Trindade e da sua oficina, no largo João de Deus, saem violas, guitarras, alaúdes, banjos, entre outros. Mas este caldense tem um gosto especial por recriar instrumentos de outros tempos. O último projecto foi construir uma réplica da viola de mão do século XVI que terá sido produzida por um… português.
“Conhecem-se duas violas de mão do estilo ibérico do século XVI com fundo canelado que sobreviveram até aos nossos dias”, começa por explicar Orlando Trindade na sua pequena oficina no Largo João de Deus, onde nos mostra a réplica que ele próprio produziu. Uma dessas violas, que está no Museu da Música em Londres, tem uma etiqueta onde consta que foi construída por Belchior Dias, em Lisboa, em 1581. A outra pertenceu a uma coleccionadora privada e desde os anos 90 está no Museu da Música de Paris. Esta não tem nenhuma etiqueta, mas ao ser “descoberta”, foram notadas as semelhanças com a primeira – desde o fundo canelado, com sete aduelas, a outros pormenores como a junta do braço. Ambas são de cordas duplas, mas a de Belchior Dias é de cinco ordens e a anónima de seis.
Orlando Trindade conta que, no caso da anónima, o teste de dendrocronologia data o corte da madeira em inícios de século XVI. E que a última proprietária da viola havia comprado alguns instrumentos em Portugal. Tudo isto leva o construtor de instrumentos musicais a afirmar que “provavelmente a construção da viola que está no Museu da Música de Paris é portuguesa e do mesmo construtor”.
Para percebermos a importância deste tipo de viola temos de recuar ao tempo em que ela foi construída. Vivia-se em Portugal uma época de fulgor com os Descobrimentos e com todos os produtos que chegavam de África, da Índia e do Brasil.
Em terras lusas, e também em Espanha, foram surgindo vários construtores de instrumentos musicais. Na Península Ibérica foram criados regimentos dos violeiros, que definiam as regras para ter a carta de violeiro e os testes e instrumentos que os candidatos tinham de fazer. No século XVI existiam regimentos em Lisboa, Madrid e Sevilha.
A viola de mão com o fundo canelado não era um instrumento popular. Comparando com outros instrumentos musicais desta época, percebe-se que esta era também um símbolo de um estatuto social mais elevado. “É um instrumento sofisticado, assim como o repertório que existia para ele”, conta-nos Orlando Trindade, enquanto folheia um dos primeiros livros de ensino de viola, do século XVI. O livro é de um mestre espanhol, mas dedicado ao rei português.
A madeira usada – pau santo brasileiro – e a rosácea pormenorizada (em pergaminho) são também representativas do luxo destes objectos.
UM CAOS ORDENADO
Voltemos ao século XXI e à oficina de Orlando Trindade, onde há sempre gente a entrar e a sair. É um local com uma dinâmica frenética, onde estão sempre a acontecer coisas. Um caos ordenado que na cabeça de Orlando faz todo o sentido. Entretanto aparece um senhor que vem da Roménia numa autocaravana. Viaja sozinho. Primeiro enche a caravana com vários tipos de madeira e depois percorre a Europa a vender o material a construtores de instrumentos.
Mas sobre a viola de mão… O construtor caldense acompanhou o redescobrir deste instrumento que coincidiu com a sua especialização em instrumentos antigos. Corria o ano de 1999 e na altura a primeira viola que recriou foi esta. Bem… Não exactamente esta, porque o fundo que lhe colocou era liso.
Os anos passaram e em 2003 o Museu da Música de Paris editou um desenho técnico deste instrumento. E 17 anos depois da ideia inicial e coincidindo com uma encomenda que lhe pedia exactamente isto, replicou a tal viola de mão ibérica anónima do século XVI.
Para isso teve de perceber como dobrar a madeira para esta manter a forma, mas sem partir. Usou vapor e o resultado é o que se vê na fotografia: um fundo com sete aduelas bem definidas que dão requinte ao instrumento e que diminuem a área de contacto com o corpo. A caixa de ressonância fica mais solta. “Também gosto de pensar na semelhança entre o fundo desta viola e o canelado usado por alguns arquitectos nas paredes dos auditórios antigos, onde procuravam obter uma melhor acústica”, conclui Orlando Trindade.
O resultado final foi entregue ao novo proprietário na passada semana e superou as expectativas. “O som é muito rico a nível de harmónicos e de ressonância, é colorido e tem equilíbrio”, conta.
Orlando Trindade já havia restaurado há dois anos uma tiorba (alaúde barroco). Na altura foi um pedido do Museu da Música de Lisboa e, na sequência desse trabalho, passou a integrar o gabinete técnico daquele espaço museológico.
Para além da música, este artesão é um apaixonado pela madeira, pelas ferramentas, pela História e pelo convívio. Quem ali vai pode esperar ser bem recebido, talvez ouvir a história da criação dos violinos e das violas de mão e perceber a relação destes instrumentos com a História de Portugal, como acontece a uma família que entretanto aqui aparece na oficina, em busca de um instrumento para o filho mais velho. É assim a oficina do Orlando…
Isaque Vicente
ivicente@gazetadascaldas.pt































