António leva a Óbidos a sua visão “crítica” do país e do mundo nos últimos 40 anos

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Gazeta das Caldas

DSC_0541 copyAs “Figuras, Figurinhas e Figurões” de António já podem ser apreciadas em Óbidos. Na galeria L (edifício dos Correios) estão reunidos 62 cartoons, escolhidos entre os mais de dois mil publicados que o autor realizou nas últimas quatro décadas no jornal Expresso e os figurões em cerâmica feitos em parceria com a Bordallo Pinheiro.
A relação entre a cerâmica e a ironia na história caldense foi abordada pelo historiador João Serra, enquanto que o presidente do Observatório de Imprensa, Joaquim Vieira, falou sobre importância do conceito de liberdade de expressão no cartoon e do poder de encaixe que é necessário existir na sociedade para aceitar a crítica.

Embora entenda que as exposições de cartoons devem falar por si próprias, António fez uma visita guiada pelos seus 40 anos de trabalho, partilhando as histórias e momentos que envolveram os vários desenhos expostos.
O primeiro desenho que fez, publicado a 16 de Março de 1974 num suplemento do jornal A República, inicia a mostra, logo seguido de um outro, comemorativo dos 20 anos do 25 de Abril. Como o próprio autor explicou, a complexidade dos acontecimentos da altura necessitavam de outro tipo de discurso, pelo que passou dos desenhos para a caricatura.
António foi deixando a palavra para trás nos seus trabalhos, até que esta desapareceu completamente. Viria a busca-la depois para os títulos. “É que os desenhos sem palavras por vezes defendem-se mal, daí a necessidade do título, que uso e vou continuar a usar”, justificou.
Pelas paredes da galeria L é possível encontrar caricaturas de vários políticos e individualidades portuguesas e estrangeiras, como é o caso de Álvaro Cunhal, Cavaco Silva, José Sócrates, Fernando Pessoa, Picasso, Ângela Merkel, Ronald Reagan, Nelson Mandela ou Nicolas Sarkozy. Também o conhecido boneco de Bordalo Pinheiro, o Zé Povinho, não escapou à ironia do cartoonista.
Da autoria de António é também o cartoon Preservativo Papal, o seu “desenho mais conhecido do século XX”, publicado no Expresso em 1993, onde desenhava o Papa João Paulo II com um preservativo no nariz, numa sátira à condenação da Igreja do uso dos contraceptivos. A imagem valeu-lhe reações de alguns sectores mais conservadores da sociedade, tendo chegado mesmo a circular um abaixo-assinado contra aquele cartoon, com recolhas de assinaturas à porta das igrejas.
As questões da Síria também estão patentes num cartoon de 2012, com a figura do presidente daquele país, Bashar al-Assad. Contudo, se fosse hoje, “já teria que juntar outros personagens”, disse, numa alusão aos mais recentes acontecimentos relacionados com o terrorismo.
O quadro mais recente, já de 2015, é a Procissão Cubana, que marca a aproximação do Papa a Cuba e tem como intervenientes Raul Castro a segurar o irmão, Fidel, um estandarte com o rosto de Che Guevara e, por trás, o Papa Francisco.
Da mostra fazem também parte os Figurões. Mário Soares, Eusébio, o Papa Francisco, Angela Merkel e Barack Obama, são as primeiras cinco personalidades caricaturadas, a três dimensões, numa parceria com a Fábrica Bordallo Pinheiro. Para ver, até Janeiro, há ainda um conjunto de chávenas da Vista Alegre com caricaturas de figuras portuguesas, ligadas às artes, que resultam de um trabalho que António fez para a estação de metro do aeroporto de Lisboa.

“A liberdade de expressão é muito importante no cartoon”

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“Nas Caldas não há uma relação intrínseca na história entre a cerâmica e a ironia”, começou por explicar o historiador João Serra, numa pequena conversa que teve lugar após a inauguração. O primeiro ceramista onde há qualquer coisa de ironia é em Manuel Mafra, com João Serra a destacar três peças entre os mais de 300 modelos por si criados.
Já os contemporâneos caldenses de Manuel Mafra e Rafael Bordalo Pinheiro “limitaram-se todos eles a reproduzir o Zé Povinho, nenhum explorou a veia caricatural ou humorística”, salientou o também docente da ESAD.
“O Zé Povinho, sim, passou a fazer parte da galeria das lojas caldenses”, salientou João Serra sobre a obra criada por Bordalo Pinheiro em 1875. Já Avelino Belo fez uma única peça, onde retrata a figura de um capitalista disfarçado com várias indumentárias numa alusão ao conde de Burnay.
João Serra falou também das composições das chamadas malandrices, que se destinam a conseguir uma gargalhada, bem como da representação da figura humana, desde o registo mais popular até um registo mais escultural. “Aí foi sobretudo a fábrica Bordalo Pinheiro, com Manuel Gustavo, que introduziu figuras que representam de uma forma próxima da caricatura personagens da política nacional e internacional”, disse, dando como exemplos Afonso Costa, Salazar, Hitler ou Churchill.
É nessa linha que se situa hoje, de acordo com o historiador, Carlos Constantino, que compõe figuras de barro de personalidades destacadas da sociedade portuguesa e internacional. Considera ser representações com alguns apontamentos de exagero, mas que não interpreta como caricaturas porque não contam uma história nem têm uma narrativa.
Por outro lado, referiu que houve caricaturistas que se aproximaram da cerâmica, desde logo Bordalo Pinheiro e a sua célebre caricatura Os Barrigas.
Para João Serra a “cerâmica tem uma capacidade narrativa muito inferior ao desenho”.
O presidente do Observatório de Imprensa, Joaquim Vieira, destacou que o conceito de liberdade de expressão é muito importante no cartoon. Referindo-se a António, com quem trabalhou durante vários anos no Expresso, o jornalista disse tratar-se de um “caso único de persistência nesta área”. Destacou o seu mérito e o facto de ser “crítico suficiente para que a sua crítica não seja gratuita”, assim como o talento do seu traço.
Joaquim Vieira considera que o cartoonismo é uma actividade muito séria e lembrou o ataque ao jornal francês Charlie Hebdo, o que mostra que as caricaturas incomodam, sobretudo quando entra em campos susceptíveis como o da religião. “Cada desenho exprime uma posição, se fossem neutros não havia esta afinidade que os leitores têm em relação ao trabalho do António”, concretizou.
E quais as condicionantes que existem aos cartoonistas? Para o António, a primeira é pessoal e depois existem os limites do órgão de comunicação para onde se trabalha.
O cartoonista interessa-se por acontecimentos e diz-se disponível para criticar o próximo governo, tal como o fez como o anterior. “O que me interessa é o regime, que merece ser defendido”, concluiu.
Esta exposição, que está patente até 3 de Janeiro, insere-se na comemoração dos 90 anos da Gazeta das Caldas.

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