O cineasta Manoel de Oliveira faleceu na madrugada de 2 de Abril, aos 106 anos, vitima de doença.
Foi autor de mais de 50 filmes, entre curtas e longas metragens, tendo sido várias vezes premiado a nível nacional e internacional.
Em 1928, Manoel de Oliveira (com 20 anos) participou num filme de Rino Lupo e, em 1931, estreou-se como realizador com a curta-metragem documental Douro, Faina Fluvial.
O seu último filme, O Velho do Restelo, estreou em 2014 quando o realizador celebrou o seu 106º aniversário (11 de Dezembro). Era o mais velho realizador do mundo em actividade.
Publicamos um conto da autoria de João B. Serra que ilustra um diálogo entre Manoel de Oliveira e Catherine Deneuve.
Faina Fluvial
Caminhavam lentamente ao longo do cais, por entre as bancas de vendas de mil e uma pequenas recordações de origem e gosto duvidosos, o velho realizador com a sua actriz. Tinham o sol de frente, temperado por uma brisa soprada do mar lá de longe. Solícita, ela, apontando obstáculos e antevendo dificuldades ao passo apoiado do cineasta.
– Não tem de se preocupar, Cláudia, tenho a minha bengala. De escadas é que não me consigo desenvencilhar sozinho.
As esplanadas estavam repletas. Boa parte dos visitantes, de feições nórdicas, envergavam tshirts e calções. As mesas, começavam a receber, além dos refrigerantes e da cerveja, as comidas empratadas do dia.
– Aqui era o mercado do peixe. Ali, mais atrás, o cais de desembarque de pessoas e mercadorias. Todo este bairro, que se prolonga até à Sé, hoje classificado como Património da Humanidade, era um bairro popular, habitado por operários, gente trabalhadora e de muito poucos recursos.
– O Manoel registou esse ambiente da Ribeira num filme dos anos 1930. É o seu primeiro filme, não é?
– Fiz as primeiras imagens em 1929. O meu pai tinha-me dado no final de 1928, como prenda dos 20 anos, uma máquina de filmar. Uma Kimano de 35 mm de 1924. O António Mendes, um amigo mais velho que se interessava muito por fotografia, aceitou ser o meu operador de câmara. Como ele só tinha tempo livre aos fins de semana, as filmagens demoraram quase dois anos.
– A minha experiência de trabalho consigo é a inversa. As filmagens adiantam-se sempre ao que a produção tinha antecipado.
– Quando filmo já sei praticamente a sequência que resultará na montagem. Também foi assim no Douro Faina Fluvial, esse meu primeiro filme. Efectuei a montagem em poucos dias, numa mesa de bilhar da casa dos meus pais.
– O que mais me surpreendeu no filme foi o ritmo dramático, quase sufocante dos acontecimentos: a chegada e a partida dos vários tipos de embarcação, a carga e a descarga, o transporte de pessoas e mercadorias, o vaivém dos operários, pescadores, trabalhadores, as gruas, os carros de bois, as camionetas, os comboios, o avião, tudo isto ligado e impulsionado pelo rio.
– Filmei a cidade, a minha cidade. Como uma construção. Há um rio, sim, mas são as pessoas que lhe dão vida, cruzando actividades nas suas margens, habitando as suas encostas, atravessando os seus cais e pontes.
– No filme, a ponte Luiz I é uma personagem. O farol da barra do Douro, outra. A ponte é a estrutura e o farol o comando.
Tinham franqueado os pilares da ponte e iniciado a travessia. Manoel seguia na frente, dada a exígua largura do passeio. A meio, pararam, apoiando-se no varandim.
– Apesar do ferro, imponente e maciço, esta é uma ponte leve e rápida. Como no seu filme. – notou Cláudia.
Manoel apontava com a bengala alguns dos edifícios históricos que se distinguiam no meio do casario
– Parece um cenário – disse Cláudia -, mas o filme apresenta a cidade como uma criação incessante.
Intensificara-se o movimento das embarcações turísticas subindo e descendo o rio, os grupos de visitantes deslocando-se ao longo das margens.
– O turismo tomou conta do espaço. De facto, não há aqui já nada para ver. Agora, sim, a cidade é um puro cenário.
– Talvez ali, no elevador dos Guindais, pudessem projectar o seu filme. – sugeriu Cláudia. – De facto, já não restam sinais do que era a cidade da Faina Fluvial, e estas pedras, travessas e rebites não falam por si.
– O cinema é a memória. – murmurou Manoel.
Aproximou-se um pouco mais de Cláudia.
– A cidade que filmei tinha uma alma e as pessoas uma identidade, que era a do seu trabalho, em relação com o rio. Hoje há clientes, passageiros, turistas. O visitante de hoje procura uma experiência, mas o lugar já perdeu o seu antigo espírito.
Falava-lhe ao ouvido agora.
– Vou-lhe contar o que me sucedeu há dias. Esta zona ribeirinha tem por patrono o nosso príncipe das Descobertas, Henrique. Procuro-o às vezes, peço-lhe conselho, inspiração, energia. Ora o avisto lá no alto da estátua que Tomás da Costa projectou nos finais do XIX para a praça que levou o seu nome. Ora o sondo no painel da parede exterior da Igreja de Massarelos. Ora o interpelo nos azulejos da Estação de S. Bento onde Jorge Colaço o sobrelevou vitorioso em Ceuta. Foi aqui que me dirigi desta vez. Havia um grupo numeroso de turistas junto ao painel. O guia, um rapaz desenvolto, contava as peripécias da conquista da cidade norte-africana. Foi então que notei, e só eu devo ter notado, um movimento extraordinário. O Infante tinha virado ligeiramente a cabeça, como se quisesse atrair o meu olhar. Fitámo-nos… Ele dirigia-me um sorriso cúmplice, irónico, sem dúvida, à mistura com uma imensa bonomia.
João B. Serra
Nota
O texto Faina Fluvial faz parte do livro Cidade Imaginária, um livro de contos de João B. Serra, que será editado em breve.






























